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Migrar não é crime

Beatriz Gomes DiasBeatriz Gomes Dias*
Beatriz Gomes Dias

No dia 12 de março, o cidadão ucraniano Ihor Homenyuk foi torturado e assassinado, enquanto estava à guarda do Estado português. Este crime hediondo aconteceu nas instalações do Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) do aeroporto de Lisboa e três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) foram acusados pelo Ministério Público.

As condições em que este homicídio ocorreu deve alarmar-nos a todas/os, não apenas pela violência extrema do ato e pela tentativa de ocultação do mesmo, mas também por ter sido praticado enquanto este cidadão se encontrava à guarda de uma autoridade policial, do Estado português, e por ter contado com a conivência ou, pelo menos, a negligência da hierarquia.

Os centros de instalação temporária e os espaços equiparados destinam-se à detenção de imigrantes que aguardam execução de medida de afastamento do terri­tório nacional, nos termos do Artigo 146.º-A da chamada Lei de Estrangeiros (Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho), assim como de indivíduos que aguardam execução da pena acessória de expulsão, após cumprimento da pena de prisão, ou em caso de antecipação dessa execução.

Nos últimos tempos têm vindo a público denúncias de pessoas que ficaram “retidas” no EECIT de Lisboa que nos mostram que este não é um caso isolado, apenas teve, infelizmente, consequências mais trágicas. Estas pessoas migrantes e seus representantes legais relatam que as agressões aos detidos são comuns.

Por norma, os estrangeiros cuja entrada no país é recusada, nos termos do Artigo 38.º, n.º 4, da Lei de Estrangeiros, bem como os requerentes de asilo a quem se aplique medida de detenção, nos termos do Artigo 35.º-A da Lei de Asilo, são detidos nos EECIT. Estas pessoas são consideradas, pelo estado Português, inadmissíveis. São percecionadas como um empecilho do e enviadas de volta para as suas terras no primeiro avião que esteja disponível.

Estes são locais de detenção onde se encontram pessoas que não cometeram qualquer crime, sendo detidas tão-somente pela sua condição de migrante indocumentado/a. A maioria das pessoas detidas sente que é tratada como criminosa. São privadas da sua liberdade e do contacto com familiares e amigos e não têm apoio jurídico adequado, nem dispõem de um tradutor/intérprete. Frequentemente são alvo de abuso de autoridade e de todo o tipo de arbitrariedades por parte das forças policiais, sob a forma de negação de direitos, humilhações, intimidações e agressões.

Estas situações são há muito denunciadas pelas organizações de defesa dos direitos dos migrantes e refugiados, que têm reivindicado o direito de defesa, nomeadamente através de um posto de atendimento e apoio jurídico para quem chega a Portugal.

A Provedora de Justiça alertou reiteradamente, e há muito, as autoridades competentes para as condições absolutamente inadequadas e para os riscos de tortura em especial no EECIT de Lisboa, bem como para a imperiosa necessidade de soluções alternativas condignas para quem chega ao nosso país e não recebe permissão de entrada.

O relatório de 2019 que publicou enquanto responsável pelo Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura referia que Portugal era o único entre 17 países europeus a deter migrantes em aeroportos por mais de 48h e afirmava que estes locais apresentavam “fatores de risco para a ocorrência de tortura e maus tratos”.

O Bloco de Esquerda também criticou no passado o funcionamento dos CIT e espaços equiparados, nomeadamente denunciando práticas de detenção de crianças requerentes de asilo.

Nos últimos tempos têm vindo a público denúncias de pessoas que ficaram “retidas” no EECIT de Lisboa que nos mostram que este não é um caso isolado, apenas teve, infelizmente, consequências mais trágicas. Estas pessoas migrantes e seus representantes legais relatam que as agressões aos detidos são comuns. A sala onde Ihor Homenyuk foi espancado até à morte, era conhecida como um espaço onde as pessoas detidas eram humilhadas e agredidas.

Esta era, infelizmente, uma morte anunciada.

Confrontado com o horror dos relatos publicados na comunicação social, o Bloco de Esquerda pediu de imediato uma audição com carácter de urgência do Ministro da Administração Interna, de modo a apurar as responsabilidades políticas de quem tem a tutela do SEF.

Nessa audição, que ocorreu no dia 8 de abril, o Ministro condenou de forma inequívoca o acontecido e assumiu o compromisso da realização de uma investigação célere, do apuramento de todas as responsabilidades, da assunção de consequências “sem olhar a quem” e de mudanças na estrutura do SEF.

Passaram mais de oito meses e não houve resultados dignos desse nome. Não houve quaisquer consequências políticas deste crime bárbaro, qualquer avaliação das suas causas, qualquer mudança de política, qualquer palavra ou apoio à família da vítima.

Só a forte pressão política e mediática terminou com o silêncio ensurdecedor do Estado. A Diretora Nacional do SEF abandonou “a seu pedido” o cargo e o Estado, depois de ter ignorado a família, decide finalmente pagar-lhe uma indemnização.

As poucas medidas entretanto tomadas ficam muito aquém do necessário. Houve uma intervenção de requalificação das instalações do EECIT do aeroporto de Lisboa que mais não foi do que uma operação de cosmética que não alterou nada de estrutural. Melhorou as condições das instalações, é certo, mas deixou inalterada a política de detenção, ou seja, as pessoas que não são autorizadas a permanecer em Portugal vão continuar a ser presas e isso é inaceitável num Estado de Direito democrático.

O Governo tratou este assassinato como um mero acidente de percurso, uma mancha excecional numa instituição policial de outra forma exemplar.

Mas o que este crime hediondo e vergonhoso nos revela é a falência de um modelo caduco e desumano de lidar com a imigração. Um modelo cujo enfoque não é garantir um acolhimento que respeite os direitos humanos e a dignidade das pessoas migrantes e requerentes de asilo, mas tratá-las com desconfiança e suspeição, como uma ameaça à segurança.

As pessoas migrantes e requerentes de asilo que procuram Portugal em busca de uma vida melhor, como tantas portuguesas e portugueses fizeram no passado e continuam a fazer no presente, não podem ser tratadas como suspeitas ou mesmo criminosas até prova em contrário. Têm de ver respeitados os seus direitos e ser tratadas com todo o respeito e humanidade que lhes são devidos. O Estado de Direito não se suspende quando se cruza a fronteira de entrada em Portugal.

Esta política securitária de imigração, que transforma as pessoas migrantes numa ameaça a controlar, num caso de polícia, não nos serve enquanto país. Do que precisamos é de uma política de acolhimento destas pessoas que assente numa abordagem humanista, que respeite os seus direitos e valorize a diversidade e o contributo que dão a Portugal.

É por isso que defendemos que é preciso acabar com o SEF, mas não basta acabar com o SEF.

De nada nos serve acabar com o SEF e transferir todas as suas competências para outra força policial e muito menos criar uma super-polícia com licença para abusar ou mesmo matar. Isso significaria seguir o velho adágio que defende que “é preciso mudar algo para que tudo fique na mesma”.

Ora, o que faz falta é precisamente o contrário: é preciso mudar tudo para que nada fique na mesma. É preciso uma mudança radical e profunda das políticas dirigidas às pessoas migrantes e refugiadas.

É necessário que o acolhimento de pessoas migrantes e requerentes de asilo caiba a um organismo vocacionado para o efeito, com funcionárias/os com uma formação rigorosa, que assegure o mesmo respeito pelos direitos que é garantido às cidadãs e cidadãos nacionais. Um organismo administrativo que acolhe e não uma polícia que reprime.

É necessário que em todas as etapas do processo de admissão de entrada, as pessoas migrantes, requerentes de asilo e refugiadas tenham, sempre que necessitem, acesso a apoio jurídico especializado, a intérpretes e mediadores com quem possam comunicar numa língua que dominem, ao apoio de organização não governamentais que atuem nesta área, a apoio consular.

É preciso abandonar de uma vez por todas o modelo que assenta na detenção de pessoas migrantes, incluindo menores, que, por algum motivo, veem recusada a sua entrada no país. Os centros de instalação temporária e espaços equiparados não são mais do que prisões que detêm, frequentemente em condições deploráveis, pessoas cujo único crime foi terem vindo para Portugal em busca de melhores condições de vida.

É urgente acabar com estas prisões e implementar modelos alternativos à detenção, modelos que respeitem a liberdade, a autonomia e os direitos das pessoas migrantes e não as tratem como criminosas. As soluções alternativas existem, já foram testadas noutros países e devem também ser implementadas em Portugal.

É o Ministro Eduardo Cabrita a pessoa certa para implementar as mudanças profundas que são necessárias e urgentes? A resposta é não.

Pela sua conduta neste caso e pela sua manifesta indisponibilidade para questionar o modelo atual de relacionamento do Estado com as pessoas migrantes e refugiadas, o ainda Ministro já demonstrou que não tem condições políticas para permanecer no cargo.

As pessoas migrantes e refugiadas merecem mais respeito e humanismo, merecem melhor do que remendos num sistema que já provou ter falido há muito tempo.

*Deputada do Bloco de Esquerda (BE) – Portugal

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