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Vou lá visitar pastores

António Maló de AbreuAntónio Maló de Abreu*

Este é o título de um livro fantástico de Ruy Duarte de Carvalho. Angolano, nascido em Santarém, inicialmente regente agrícola, depois antropólogo, cineasta, professor, escritor e mil outras coisas mais, para além de ter sido meu bom amigo e contador de histórias também.

Em tempos que já lá vão fui ao velho deserto do Namibe com ele. E um pastor explicou-me que quando se faz uma parede de fogo à volta de um escorpião, o bicho procura desesperadamente uma saída por todos os lados. Tenta e volta a tentar, rápido e de cauda no ar. É uma luta furiosa pela sobrevivência. E se não encontra escapatória e lhe começam a faltar as forças, espeta em si próprio o aguilhão. É voz corrente que se suicida. Experimentem então guardar este escorpião já morto. Renasce passadas umas horas, pois o que ele fez foi anestesiar-se. Tem oito miligramas de veneno e o engenho de só despender uma porção proporcional ao tamanho da vítima que quer matar. Sabedoria e economia animal.

O mistério de um povo destemido e lutador, preparado para sofrer as agruras da vida e as injúrias do tempo, porventura desaparecido, ainda hoje perdura

Em tempos voltei ao deserto com o Ruy e o Kaparula, outro incontornável nome de onde faz sul, e aí tentámos saber, junto de um pastor de afamadas conhecências, acerca do mais misterioso dos povos e de que nada se fala ou sabe – os Homens do Nevoeiro. Encontrei, perto da Baía dos Tigres, quase a chegar à foz do Cunene, o que ainda resta das suas cento e oitenta habitações, formadas por grandes e delgadas lajes, cravadas na areia e dispostas em círculo. Há notícias da sua presença no século XVII e foram referidos pelo cronista Duarte Pacheco Pereira no “Esmeraldo de Situ Orbis”, como um povo que vem do sertão durante certas épocas do ano, pescar na manga das areias, onde fazem casas com costas de baleias. Houve, pela certa, uma degradação do grupo provocada pelas terríveis condições da região.

Mas o mistério de um povo destemido e lutador, preparado para sofrer as agruras da vida e as injúrias do tempo, porventura desaparecido, ainda hoje perdura. De tempos a tempos muitos de entre nós são obrigados a ir ao deserto. Mas ao seu deserto interior e mais profundo. E é o que fazem nestes tempos de chumbo provocados pela pandemia em que, para alguns, o comportamento do escorpião cercado se aplica e ajuda a ultrapassar um fim anunciado.

Eu, por mim, ao deserto só lá vou para visitar pastores, como me ensinou o Ruy Duarte de Carvalho. No dia da sua morte, em Swakopmund, escrevi um breve texto em homenagem à nossa amizade, aliás descrita de passagem nos Papéis do Inglês: sinto um silêncio que atordoa em todas as esquinas das minhas memórias. Sinto que a noite caíu mais cedo lá no sul do mundo, como uma viúva que se recolhe sózinha antes do sol se pôr. E sinto que há um guardador de deslembranças rumo ao céu.

*Deputado e Coordenador do Partido Social Democrata (PSD) na Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas – Portugal

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