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A África do Sul deve entrar em Moçambique?

Pedro TadeuPedro Tadeu*

Uma unidade de intervenção rápida das forças armadas da África do Sul está a treinar um grupo de comandos para ir a Cabo Delgado, Moçambique, tentar acabar com os ataques terroristas que assolam a região.

A ideia não é nova: um grupo de mercenários russos já tentou o mesmo, com embaraçoso insucesso. Apesar de terem equipamento militar, moderno e sofisticado, e de dominarem de forma absoluta o espaço aéreo, os homens do “Grupo Wagner” acabaram por desistir da luta, depois de sete dos seus membros serem mortos em emboscadas efetuadas por guerrilheiros islâmicos entrincheirados na selva.

Estes designados terroristas aparecem surpreendentemente bem equipados, com tanques e armas pesadas, conhecem bem o terreno e, aparentemente, contam com a colaboração e a simpatia de uma parte da população, apesar dos relatos, constantes mas pobremente documentados, de várias chacinas de civis indefesos, que incluem até denúncias de canibalismo.

Os russos queixaram-se das Forças Armadas de Defesa de Moçambique, que os deviam ajudar, por alegadamente estarem mal preparadas e desmotivadas – aparentemente atrasos no pagamento de salários terão agravado a situação.

Moçambique deposita grandes esperanças na concessão internacional da exploração do gás natural que abunda em Cabo Delgado. Isto traz o condimento da cobiça empresarial

Do lado moçambicano, que oficialmente não reconheceu a presença destes mercenários (apesar de várias agências noticiosas internacionais, ocidentais, e de outros meios de comunicação social africanos terem noticiado a atividade do grupo, em Cabo Delgado, na segunda metade do ano passado, supostamente pago pelo governo de Moçambique), aponta-se a falta de conhecimento do terreno por parte dos russos, a impreparação para uma guerra deste tipo e uma falta de informação básica sobre a realidade local.

Agora, conforme noticiou o Plataforma, são os militares sul-africanos – país que tem fortes laços políticos, sociais e económicos com Moçambique – que pensam tentar a sua sorte em Cabo Delgado, apesar de o presidente moçambicano, Filipe Nyusi, não ter pedido ainda esse apoio.

O ponto é este: Moçambique deposita grandes esperanças na concessão internacional da exploração do gás natural que abunda em Cabo Delgado. Isto traz o condimento da cobiça empresarial à sopa mal equilibrada que a pobreza, o fundamentalismo islâmico, a debilidade das instituições moçambicanas e o subdesenvolvimento estão a cozinhar, brandamente, há muitos e muitos anos, na região.

Não é por acaso que o Jornal de Angola destaca declarações do moçambicano Murade Murargy, antigo secretário-executivo da CPLP, a defender esta ideia:  o conflito em Cabo Delgado “tem uma natureza religiosa e também pode ter uma componente económica”. Porquê? Segundo ele, porque a nova oferta de reservas naturais de Moçambique, até aqui por explorar, pode “constituir um perigo ao nível da oferta no mercado internacional e criar um desequilíbrio nos preços”.

Murargy defende que seja investigada a hipótese de estar aí a razão do elevado financiamento que alguém dá aos fundamentalistas islâmicos que atuam em Cabo Delgado, denunciado pela qualidade e quantidade do equipamento militar que o Estado Islâmico, suposto mentor deste movimento, não está neste momento em condições de fornecer.

A presença de mercenários russos em Moçambique – que atuam a título privado – resulta certamente da candidatura da empresa estatal russa Gazprom para a concessão da exploração de gás natural, numa batalha que disputa com a norte-americana Exxon e que valerá cerca de 30 mil milhões de dólares.

África, de resto, é palco de diversas competições deste género. Militares privados russos (há na Rússia, pelo menos, 10 empresas de mercenários semelhantes ao Grupo Wagner) atuam na República Centro-Africana, na Líbia, Camarões, Angola e Sahel, para além dos palcos “tradicionais” de influência russa no Médio Oriente.

Vários analistas admitem a hipótese destas operações militares resultarem também de uma colaboração entre empresas russas e chinesas, com o apoio informal dos respetivos governos.

Em contrapartida, os Estados Unidos e a NATO têm em África 34 bases militares e 30 novos projetos semelhantes em construção, que são igualmente instrumentos da corrida das empresas norte-americanas e da União Europeia aos recursos naturais em África.

Há aqui, portanto, um cheiro bastante intenso a neocolonialismo. Neste ambiente, politica e empresarialmente pestilento, uma eventual entrada de militares sul-africanos em Cabo Delgado dá-me sentimentos contraditórias.

Por um lado, se isso acontecer, a entrada da África do Sul equilibra para o “lado africano” (seja lá o que, na prática, tal coisa quererá dizer) as forças envolvidas no terreno em Cabo Delgado, e isso, no meio desta desgraça toda, não me parece muito mal.

Por outro lado, a entrada de novas forças estrangeiras no país confirma a impotência de Moçambique (entalado numa tenaz de interesses internacionais contraditórios, com um poder muito superior ao do Estado moçambicano) não só em dominar militarmente o terrorismo islâmico como em controlar de forma sã, independente e pacífica o processo de exploração económica das suas riquezas naturais. E este facto, denunciador da atual organização mundial, deixa-me bastante deprimido.

*Jornalista – Portugal

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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