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O princípio do fim

No último domingo votou-se em Portugal para eleições legislativas e aconteceu não o impensável mas o que mais temia: o princípio do fim.

João MeloJoão Melo

Em 2019, um ano de optimismo e expansão económica, tropecei no aviso de que o mundo caminha para um conflito global. A incredulidade inicial desvaneceu-se rapidamente no ano seguinte e os acontecimentos foram evoluindo até ao estado actual em que para muita gente uma guerra não só é possível como inevitável. As coisas são como são, não estou a culpar ninguém, eu é que costumo debruçar-me sobre o passado e constato que as condições criam vontades, raramente sucede o contrário embora julguemos que tudo depende do livre arbítrio.

Vejo a história repetir-se, reagimos de forma previsível, e por mais absurdo que pareça um cenário futuro, ele realizar-se-á se as circunstâncias nos empurrarem para tal. O mundo ligou-se à informação em permanência roubando espaço e tempo para a processar em conhecimento, e hoje o efeito de manada sobrepõe-se à acção individual. Assim, num hipotético/provável conflito mundial não me peçam para clarificar de que lado estou, não entrarei nesse jogo porque ele foi montado ao longo dos últimos anos de maneira a que o lado óbvio da barricada nos fosse entregue de bandeja: ninguém precisa de pensar, apenas reagir seguindo a manada, uma vez que as convicções estão formatadas há muito.

O “óbvio” é uma papa cozinhada para se apresentar como a melhor, na verdade, a única escolha possível; foi concebido para não termos dúvidas, quer seja pela escassez de opções, o mal menor, o protesto, ou o inimigo declarado. E isto tornou-se tão redutor que se eu optar pelo menos óbvio de nada servirá, faz-me sentir diferente, depois sou atropelado e a manada segue o seu caminho. Para quem preparou a escolha nas democracias ocidentais o caos é interessante, vivemos em sociedades fracturadas, enfraquecidas, o clássico “dividir para reinar”. E quem preparou a escolha? Desconheço, tal como desconheço o objectivo subjacente, daí não me engajar, já sei que vou ser enganado.

O processo funciona como a magia: captam a nossa atenção numa mão enquanto a outra executa o truque. Também sei que basta lançar-se uma faísca, a dinâmica social faz o resto, estamos bem atestados de matéria inflamável, e até há pouco tempo se se quisesse ter uma noção da origem da manipulação era seguir o rasto da roda da finança (caras não há), mas suspeito que esse propósito foi ultrapassado; há demasiados problemas e gente pobre no mundo a poluir o ambiente de uns poucos demasiadamente ricos…

O que se pretende é que estejamos suficientemente motivados para que num eventual imperativo nacional alinhemos na facção que nos foi destinada e vamos dar o sangue por ela. No final não ganharemos guerra nenhuma, morreremos a lutar uns contra os outros, quem a ganha é quem nos exorta a travá-la; e os tipos que nos dirigem, as caras que conhecemos e às quais se consegue apontar o dedo quase nunca estão no topo da pirâmide, também eles são usados (na vaidade, sede de poder ou riqueza) para nos manipularem, aliás apostaria que muitos nem têm consciência disso, vão na onda da tal dinâmica social.

Voltando às eleições. O ADN, um partido que a wikipedia define como “conservador, anti establishment, nacionalista, euro-céptico e tradicionalista” decuplicou a votação em relação ao último acto eleitoral, por um triz não elegia um deputado. Numa entrevista a uma rádio posteriormente editada e transmitida num programa de entretenimento na TV, o seu líder diz acerca dos emigrantes “sei que alguém vai fazer um meme com isto, mas se calhar era melhor abrirmos o Tarrafal e mandarmos essa gente para lá, se calhar era o único sítio real onde eles iriam aprender alguma coisa”; depois ainda repetiu o slogan do Tarrafal mais 10 vezes! Isto é uma medida viável ou conversa de café?

Saberá ele que o Tarrafal fica em Cabo Verde, um país, uhh… africano, independente? E foi muito disto que tivemos na campanha, sobretudo dos menores partidos e do Chega: conversas de café, desabafos emocionais excitados, incoerentes até, e muito provavelmente vários indivíduos com o perfil deste do ADN, obscuras personagens secundárias das listas de partidos “anti-sistema”, chegaram ao parlamento à boleia das figuras que conhecemos, substituindo os obscuros membros dos aparelhos de partidos “pró-sistema”.

Imagino o conteúdo e elevação dos próximos debates na Assembleia resultante desta nova súcia… Ao menos os humoristas e criadores de memes esfregam as mãos. Entre outras características o Chega consubstancia a revolta de quem tem pouco a perder, e pelo seu espectacular crescimento evidencia uma imensa mole em Portugal com pouco a perder. E agora? Bem, os dados foram lançados, grande parte dos eleitores revê-se no discurso rasca de muitos (agora) deputados, resta-nos seguir a manada, jogar o jogo até ao fim. Estas foram as circunstâncias específicas de Portugal contudo o fenómeno do ódio, revolta, pobreza, confusão, ignorância, desrespeito, desmantelamento de estruturas sociais, descrédito nas pessoas e instituições é global, que se veja, pelo menos no ocidente.

Para escrever este texto revisitei um outro que escrevi aqui há três anos e meio sobre André Ventura. Parece que envelheceu bem porque o fundamentei em padrões clássicos, afinal a história repete-se. Nota a lembrar: é através do apelo emocional e da nossa falta de memória que nos conseguem levar para onde querem; o esquecimento advém de andarmos mergulhados em dificuldades ou entretenimento no presente, logo sem memória não teremos futuro. Eu espero continuar a ter memória.

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