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“Não devemos perder esperança no princípio Um País Dois Sistemas”

A crise em Hong Kong parece não ter fim à vista, mas Regina Ip vê os protestos a perderem apoio social. A deputada pró-Pequim pede ao Governo central um novo caminho que responda à ansiedade dos jovens para o pós-2047. 

Regina Ip regressa ao escritório em passo rápido após uma reunião de uma comissão permanente do Conselho Legislativo.  Aos 69 anos já teve várias vidas. 

Primeiro como funcionária pública na administração colonial britânica, depois como secretária para Segurança após a transferência de 1997, um percurso que terminou abruptamente quando se demitiu após as manifestações de massas contra a proposta de regulamentação da lei de segurança nacional (Artigo 23 da Lei Básica). Haveria de ressuscitar politicamente cinco anos mais tarde ao ser eleita deputada pelo partido que fundou e lidera, o New People’s Party. Está ao lado de Carrie Lam no Conselho Executivo e chegou a demonstrar interesse em 2012 e 2017 em concorrer a líder do Governo, mas acabou por não estar no boletim de voto. Questionada sobre se equaciona novamente esse cenário no caso de Lam se demitir,  foge à questão. Defende a adopção da polémica lei anti-máscara e argumenta que as leis de emergência até podiam ter sido usadas mais vezes. 

Assim que a situação acalmar é preciso reconstruir pontes e uma nova visão para ir ao encontro da inquietude dos jovens face ao futuro, considera.   

– Desempenhou um papel chave na crise de 2003, quando era secretária para Segurança por altura dos protestos contra a lei de segurança nacional (Artigo 23 da Lei Básica). Quão diferente e semelhante é esta crise? 

Regina Ip – É semelhante no sentido em que há algo que liga as três crises políticas que afetaram a Região Administrativa Especial de Hong Kong: em 2003, 2012 com a questão do plano de educação nacional e agora o movimento contra a lei de extradição. O que há em comum é a resistência ao reforço da influência da nação em Hong Kong. Uma resistência muito forte relativamente ao reforço da ligação com a China continental, ao reforço da identidade nacional, contrariamente ao que sucede em Macau. 

– E temos, claro, diferenças.

R. I. – Sim. A grande diferença face aos protestes de 2003 é que na altura após a manifestação de larga escala  de dia 1 de julho, ainda no início do mês o Chefe do Executivo Tung Chee-hwa anunciou que a proposta de lei (anti-subversão) iria ser adiada. Adiou-a. Verifiquei os registos do Governo e confirmei que o Executivo não chegou formalmente a retirar a proposta de lei. Apenas não lhe deu seguimento.  Assim que Tung tomou essa decisão as pessoas saíram da rua, foram para casa aliviadas. Os protestos terminaram. Mas desta vez os protestos continuam e prolongam-se já há mais de quatro meses, mesmo com a Chefe do Executivo a ceder a exigências.

 – O que está então em causa agora para os manifestantes? 

R. I. – Os protestos já não são sobre a proposta de lei de extradição que entretanto foi formalmente retirada. Tornaram-se num movimento anti-China. Os manifestantes estão a vandalizar bancos, lojas que tenham relação com a China. E os manifestantes juntamente com os seus apoiantes que estão a  operar nos bastidores exigem um acordo político. Estão a procurar usar os protestos para obterem concessões políticas do Governo.  

– Como antevê a evolução dos protestos? 

R. I.   Podemos concluir que existem três grupos de manifestantes: os que saem à rua de forma racional e pacífica, outro de pessoas que também são pacíficas mas que mesmo assim participam em marchas não autorizadas e ilegais, e depois os mais  radicais que praticam a violência. O número de manifestantes pacíficos tem vindo a descer e julgo que isso vai continuar a acontecer ao longo do tempo por causa de toda a destruição que os desordeiros causam, o que fará com que percam o apoio da sociedade.  

– A saída de Carrie Lam da chefia do Executivo é uma das principais bandeiras dos protestos. O jornal britânico Financial Times revelou que está em marcha em Pequim um plano para substituir Lam por volta de março de 2020. Será esse o caminho necessário para resolver esta crise? 

R. I. – Em primeiro lugar não julgo que esse artigo do Financial Times seja credível. Em segundo lugar, como membro do Conselho Executivo  – liderado por Carrie Lam –  não acho que seja apropriado fazer qualquer comentário. 

– No passado manifestou intenção de concorrer a Chefe do Executivo. Estaria disposta a assumir o cargo no cenário de saída de Carrie Lam? 

R. I. – Mais uma vez, não é apropriado para mim responder, fazendo parte do Conselho Executivo. 

– Estamos a apenas três semanas das eleições para os Conselhos de Bairros (District Councils).  Teme que se os tumultos se agravarem o ato eleitoral venha a ser adiado ou mesmo cancelado? 

R. I. – Penso que o Governo está muito relutante em adiar as eleições. De acordo com a lei, apenas poderá haver um adiamento por duas semanas e isso não irá fazer qualquer diferença, pelo que não há incentivo para adiar as eleições. 

Na verdade, considero que o resultado final não vai ser assim tão afetado pelos protestos. Por exemplo, na ilha de Hong Kong, por onde fui eleita deputada, há muita gente de classe média e classe média-alta, com elevado nível de educação, bem informada e profissionais, Estão profundamente insatisfeitos e desagradados com os protestos. São uma maioria silenciosa que vê os manifestantes como agentes irresponsáveis da destruição da nossa cidade. Estão muito zangados com o impacto que isto está a ter na economia.    

– Fala de uma maioria silenciosa, mas estudos de opinião mostram uma maioria da população a apoiar o movimento como um todo. 

R. I. – Deve-se encarar esses estudos de opinião com cautela. Tudo depende como são formuladas as questões. E como a amostra é definida. Muitas pessoas já não usam telefone fixo. Eu questiono a forma como encontram as amostras para esses estudos. Há um problema de parcialidade nessa seleção. E as pessoas respondem a esses inquéritos dependendo de quem os está a realizar. Por exemplo, se for um estudo conduzido pela Chinese University of Hong Kong as pessoas mais conservadoras, por exemplo da comunidade  de Fujian, tendem a não responder ao inquérito. 

– A lei anti-máscara está a surtir resultados ou a ser contraproducente? 

R. I. – Não acho que esteja a ser contraproducente. Mas é errado assumir que uma lei anti-máscara por si só resolve a situação. Muitos países têm leis semelhantes. O valor desta lei é a facilidade na acusação e condenação de quem esteja numa manifestação com máscara. Claro que as autoridades não vão acusar e deter todas as pessoas que não cumpram a lei. 

Mas era necessário invocar as leis de emergência para dar este passo? 

R. I. – Sim, foi necessário. E penso que isso devia ter sido feito mais cedo. A minha opinião é que devíamos ter usado o enquadramento legal de emergência anteriormente e mais vezes. Não posso avançar detalhes sobre isto, mas lembro que durante os motins de 1967 o então Governo colonial britânico usou por cinco vezes as leis de emergência. Em 1973 e 1974 também foram usadas para lidar com a crise energética. Ou seja, estas leis não implicam necessariamente uma supressão de direitos e  liberdades. São simplesmente um atalho para dar a volta à burocracia normal dos procedimentos e agir rapidamente.  

– Uma notícia do South China Morning Post publicada no sábado dava conta da intenção do Governo em considerar a criacão de uma comissão independente de inquérito à violência e atuação da polícia. É esse o caminho certo?   

R. I. – Penso que o artigo em causa publicado pelo South China Morning Post tem por base uma fonte pouco credível. Aliás o jornal retirou o artigo do website pouco depois. Relativamente a essa questão, tenho perguntado sempre: o que é que as pessoas querem com essa comissão de inquérito? 

– Segundo vários estudos de opinião, a criação dessa comissão de inquérito goza de apoio maioritário da população, e de políticos de vários quadrantes, incluindo alguns do campo pró-Pequim. Não será esse um passo necessário para a resolução da crise? 

R. I. – Não penso assim. Há também essa ideia que o objetivo é a busca da verdade, dos factos. Isso não vai ser possível através dessa comissão de inquérito que seria presidida por um juiz sem poderes de investigação. Se alguém com uma máscara incendiar lojas ou homens de camisola branca  atacarem pessoas, não será possível descobrir  quem são sem recurso a uma investigação apoiada pelas forças da ordem.  Ou por exemplo, do nosso ponto de vista, investigar o envolvimento de forças externas no financiamento  e apoio logístico dos manifestantes radicais. 

– Há provas desse envolvimento externo nos protestos? 

R. I. – Claro. Alguns grupos e entidades de Taiwan admitiram isso mesmo publicamente, que têm estado a apoiar os grupos pró-independência de Hong Kong. Onde é que foram buscar o dinheiro? De onde veio aquele equipamento e materiais caros? Quem os treinou? Estes jovens manifestantes radicais foram treinados, formados. São combatentes formados e treinados. 

– E o que pensa da criação de uma comissão de verdade e reconciliação? 

R. I. – Sim, naturalmente. Quando tudo isto terminar, quando os protestos chegarem ao fim, quem estiver no Governo terá a missão de promover a reconciliação. Precisamos de  reconstruir os laços de confiança entre a população e a polícia, e entre a população e o Governo. Tem-se falado dos modelos de reconciliação da África do Sul e da Irlanda do Norte. Tudo isto pode ser estudado e analisado mas não podemos fazer isso enquanto temos estes tumultos. Só podemos fazê-lo quando a situação acalmar.  

– Quem é que poderá emergir como mediador neste processo para fazer a ponte entre as partes em conflito? 

R. I. – É muito difícil encontrar alguém sem uma agenda, alguém que possa ajudar a sarar as feridas e em que seja depositada confiança pelos dois campos. É muito difícil. A pessoa responsável por isso, quem em última análise tem esse papel, é a Chefe do Executivo. 

– Mas uma parte significativa da sociedade não lhe reconhece essa autoridade e capacidade.

R. I. – A líder da nossa cidade terá que resolver o problema. Não será resolvido por algum mediador externo. Se houver alguém com essa capacidade então deve ser Chefe do Executivo. 

– O sufrágio universal é um tema central no movimento. Como encara isso?

R. I. – Penso que essa é a verdadeira exigência. Os organizadores do movimento  têm estado à procura de uma oportunidade para reanimar este assunto uma vez que estes protestos surgem na sequência, como continuidade do Movimento Occupy, cuja prioridade é a adoção do sufrágio universal para eleger o Chefe do Executivo e todo o Conselho Legislativo. Desse modo, os chamados democratas tomarão controlo do poder.  A verdadeira agenda é o sufrágio universal.

– Que está previsto na Lei Básica como objetivo último…

R. I. – Sim. Mas repare, sufrágio universal não é o mesmo que democracia. Não podemos equiparar estes dois conceitos. Há muitos países em que existe sufrágio universal mas que acabam por se revelar aquilo que os académicos designam por democracias iliberais. Ou seja, democracias apenas no nome que não conferem aos cidadãos liberdades verdadeiras e que não produzem uma situação de Estado de Direito. Se as pessoas querem sufrágio universal há que avançar de acordo com a Lei Básica. 

– Como chegar a uma solução de sufrágio universal que seja aceite quer pelo Governo central e pela oposição em Hong Kong?

R. I. -Bem, penso que primeiro é preciso adotar legislação relativa à segurança nacional, a regulamentação do Artigo 23, antes do sufrágio universal. Se olhar para a Lei Básica, o Artigo 23 vem antes do Artigo 45, que refere o sufrágio universal como objetivo último para eleger o Chefe do Executivo e antes do Artigo 68 sobre a eleição do Conselho Legislativo por sufrágio universal. Se olharmos para a ordem dos artigos percebemos que para tranquilizar Pequim há que cumprir com a nossa obrigação constitucional plasmada no Artigo 23 primeiro, tal como Macau fez. Isso irá fortalecer a confiança do Governo central na nossa cidade. 

Se pudesse falar diretamente com Xi Jinping sobre a situação em Hong Kong, que sugestões teria?

R. I. – Dir-lhe-ia –  e estou certa que ele sabe disto – que existe uma ansiedade da parte dos jovens de Hong Kong sobre o nosso futuro após 2047. Isto é compreensível. Já passaram 22 anos dos 50 do período de não alteração de sistema. As pessoas questionam-se o que acontecerá após 2047. A minha recomendação é que o princípio Um País Dois Sistemas deve servir bem o país. É um conceito altamente criativo e serve bem o desenvolvimento do nosso país ao criar uma Hong Kong altamente liberal e plural dentro do princípio Um País Dois Sistemas. Por isso considero que Pequim deve pensar na próxima fase de Um País Dois Sistemas, como reforçar as vantagens que temos para que tenhamos uma nova Hong Kong após este período de tumultos. Não devemos perder esperança no princípio Um País Dois Sistemas. 

– Hong Kong ainda é insubstituível para a China? 

R. I. – Economicamente não. Julgo que o maior contributo de Hong Kong para o desenvolvimento da China será o Estado de Direito e a ligação com o mundo da common law. E Hong Kong é um ator importante nas instituições internacionais, como a Organização Mundial de Comércio e a Organização Mundial de Saúde. 

Hong Kong continuará a ser um canal e uma almofada para a China continental. 

José Carlos Matias 01.11.2019

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