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“Os jornais [chineses] pouco respeitaram os cortes impostos pela censura salazarista”

A jornalista Andreia Silva, radicada em Macau durante vários anos e agora em Portugal, publicou um estudo sobre a atuação da Censura no território entre 1961 e 1974. A investigação, que será também publicada em livro, destaca uma atuação diferente da censura do Estado Novo para com jornais portugueses e jornais chineses

Nelson Moura

– Como partiu a ideia para esta investigação?

Andreia Silva – Em 2019, quando comecei a trabalhar como correspondente para Macau, pensei aproveitar a minha presença em Portugal para explorar a documentação histórica sobre Macau presente em Lisboa e realizar mais investigação. Todo este projeto partiu de uma curiosidade pessoal, no sentido de perceber se a censura do Estado Novo teria, de facto, atuado em Macau, e como, por este ser um território geograficamente distante de Lisboa e com muitas especificidades políticas.

– Foi fácil encontrar a documentação?

A.S. – Foi um longo processo, como é em qualquer investigação. Para começar, fui diversas vezes ao arquivo do MNE realizar pesquisas e confirmar informações. Em Portugal fui pesquisando por fases, ao longo de três anos, juntando as várias peças do puzzle, pois a informação está um pouco dispersa. Depois, em Macau, deparei-me com alguns obstáculos que me impediram de consultar todas as edições da imprensa chinesa dos anos 60 e 70. Há algumas edições antigas de jornais digitalizadas, mas não é o caso do Ou Mun, Jornal do Cidadão, Va Kio ou Tai Chung Pou, os periódicos analisados na tese. Foi-me também referido que os jornais não estavam disponíveis para leitura na biblioteca e que teria de contactar as próprias redações para a consulta. Sem falar chinês e sem a hipótese de ter um tradutor comigo, não consegui fazer o trabalho que pretendia.

– Quais eram as principais diferenças na atuação da censura na imprensa chinesa e portuguesa?

A.S. – A Comissão de Censura à Imprensa teve duplos critérios de atuação. Em relação à imprensa portuguesa, já de si alinhada com o regime de Salazar, a censura atuava plenamente, apesar de ser classificada como “benévola” pelos próprios censores. Entre os anos de 1961 e 1974, período temporal do meu estudo, houve vários jornais suspensos, nomeadamente o Notícias de Macau, em 1962, por razões que não consegui apurar, e as publicações de índole religiosa, como O Clarim ou a revista Religião e Pátria. Estes dois foram suspensos por um período de 15 dias cada, por ordem máxima do Governador e no contexto da instauração de processos de averiguação pela Comissão de Censura, devido ao facto de textos de opinião do então bispo de Macau, D. Paulo José Tavares, não terem sido submetidos à censura. Estávamos ainda no rescaldo do movimento “1,2,3”. O bispo tentava evitar a penetração do maoísmo nas escolas católicas do território e não temia expressar as suas opiniões, em contraste com o receio das autoridades portuguesas de os protestos voltarem novamente às ruas.

“Destaco ainda que os jornais eram obrigados por lei a ter um diretor português e que o Ou Mun nunca cumpriu essa regra”

Em relação à imprensa chinesa, a Comissão pouco atuou e, quando o fez, os jornais pouco respeitaram os cortes impostos pela Comissão, sem que tenham sofrido as consequências que os jornais portugueses sofreram. Nos arquivos que pesquisei não encontrei um só processo instaurado pela Comissão de Censura que visasse a imprensa chinesa. Entre 1961 e 1974 a Comissão dedicou-se, sobretudo, a traduzir as notícias do chinês para português. Entre os anos de 1964 e 1967, sensivelmente, houve de facto intervenção da censura, mais no jornal Si Man, Jornal do Cidadão, que antes do “1,2,3” era classificado como “Pró-nacionalista” e, depois do “1,2,3”, como “independente”. Esse jornal foi o mais visado, mas também foi aquele que mais respeitou as decisões dos censores. Já o Ou Mun foi o segundo mais visado, não tendo praticamente respeitado nenhum corte imposto pela Comissão. As notícias eram publicadas sem os cortes, sendo que depois os censores simplesmente escreviam na tradução oficial “visado, mas veio publicado”. O Ou Mun sempre foi tido como a principal voz do PCC em Macau e temos depoimentos dos próprios Governadores, nomeadamente Lopes dos Santos e Nobre de Carvalho, a referir a difícil situação com que se deparava a Comissão de Censura no seu trabalho, na permanente tentativa de dialogar com as redações chinesas, no sentido de as fazer cumprir a legislação, sem sucesso. Destaco ainda que os jornais eram obrigados por lei a ter um diretor português e que o Ou Mun nunca cumpriu essa regra. Outro exemplo da diferença de tratamento da censura prende-se com o facto de o Governador enviar para Lisboa todas as semanas os recortes das notícias portuguesas censuradas, mas não o fazer com a imprensa chinesa.

– O que mais a surpreendeu?

A.S. – Quis esclarecer, à partida, uma ideia com que me tinha deparado em diversos livros, entrevistas ou artigos, de que os jornais chineses nunca tinham sido sujeitos à censura no tempo do Estado Novo. Foi preciso contar as notícias que encontrei nos arquivos, ver os temas e começar a estabelecer pontos de ligação para perceber o que de facto tinha acontecido. Tratava-se de uma temática que estava bastante dispersa em escritos já publicados. Em termos de historiografia faltam investigações sobre a atuação da censura do Estado Novo nas antigas colónias.

Depois quis também explorar quais os temas que interessavam aos censores. Em Macau, a Guerra Colonial, iniciada em 1961, era um assunto distante; não havia relações diplomáticas entre Portugal e a China e o país tinha perdido Goa, Damão e Diu em 1961, um dos anos mais difíceis para o Governo de Salazar. A Censura, embora tenha permitido alguma opinião crítica, eliminou textos sobre o jogo, a liderança da União Nacional em Macau, a morte de Lin Biao, ex-ministro da Defesa de Mao Tse Tung, ou falhas no fornecimento de eletricidade. Também atuou no sentido de eliminar textos baseados em fontes anónimas ou boatos, porque à época não havia jornalismo profissional e esse cenário era frequente. Aliás, com as fontes de informação já controladas pela Administração portuguesa, os jornais portugueses foram sobretudo censurados ao nível da opinião.

Esta análise permite-nos também perceber como se vivia em Macau e também o relacionamento entre comunidades, pois os temas e problemáticas eram diferentes. Na imprensa chinesa os censores pegaram em temas como os casos de assédio de soldados portugueses a raparigas chinesas na rua e de pequena criminalidade, o atentado a Ho Yin, a visita do papa Paulo VI à Índia – um tema sensível a Salazar -, ou até a Guerra Colonial.

A própria linguagem editorial era diferente, e basta dizer que, por exemplo, o Ou Mun sempre escreveu num tom favorável aos movimentos de independência das ex-colónias portuguesas, enquanto os jornais portugueses, nomeadamente a Gazeta Macaense, apelidava-os de “terroristas”.

Fiquei surpreendida com a atenção que os censores davam à presença dos comunistas e nacionalistas no território, algo que se vê pelo facto de os jornais Si Man (nacionalista) e Ou Mun (comunista) terem sido os mais visados pela tentativa constante do equilíbrio de poderes. A Administração portuguesa fez um excelente jogo de cintura ao longo dos anos para manter-se em Macau, pois o território sempre dependeu da China a vários níveis. Também me surpreendeu o facto curioso de a censura do Estado Novo ter permitido a existência de imprensa e livros comunistas em Macau, quando em Portugal o regime salazarista perseguia, prendia e, muitas vezes, matava os comunistas do PCP e restantes opositores, proibindo a publicação do jornal oficial do partido, o “Avante”, então distribuído clandestinamente.

– Quais as principais conclusões do estudo?

A.S. – O estudo permite-nos concluir que não podemos falar da existência de um colonialismo português, de facto, em Macau. Cedemos perante as autoridades chinesas no que diz respeito ao cumprimento da lei de imprensa salazarista. Tentámos sempre não incomodar, neutralizando e dialogando. Permitimos publicações comunistas e, depois da intensa pressão de Pequim, eliminámos e neutralizámos a presença dos nacionalistas no território em meados dos anos 60. O próprio movimento do “1,2,3” também é prova concreta de que a nossa Administração esteve em risco. Quero, contudo, destacar que este trabalho apresenta linhas de leitura e pontos de partida para outras investigações que têm limitações: trabalhei sempre com documentos oficiais do Governo português, em língua portuguesa, tive de lidar com uma documentação algo dispersa em arquivo e não pude cruzar dados com os jornais chineses publicados.

– Como vê, à luz desta investigação, o estado da censura em Macau?

A.S. – Embora seja jornalista, respondo a esta pergunta na qualidade de autora do estudo. E, nesse sentido, posso dizer que historicamente Macau sempre se pautou por entraves a uma verdadeira liberdade de imprensa. Cito estudos no meu trabalho que referem isso mesmo, no sentido de os jornais terem sido encarados, em diversas fases da história, como veículos do poder instituído e não como órgãos independentes financeira e politicamente. Os protagonistas desse mesmo poder é que foram mudando ao sabor dos tempos e da própria história.

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