Início » Dor estranha no multiverso da loucura

Dor estranha no multiverso da loucura

João MeloJoão Melo*

“Quando tinha vinte anos disseram-me para jurar lealdade ao rei, uma pessoa que age no cargo porque o seu pai e o seu avô fizeram o mesmo antes dele. Fiz o juramento porque me forçaram, senão não teria feito. Então mandaram-me matar pessoas que não conhecia e que estavam vestidas como eu. Um dia disseram-me: ‘olha, aí está um dos teus inimigos, atira nele’, e eu atirei, mas falhei. Então ele atirou e feriu-me. Não sei porque disseram que era uma ferida gloriosa.”

Há coisas que detesto mas ódio mesmo só tenho por uma coisa, a guerra. A minha experiência neste campo cinge-se ao “serviço militar obrigatório” no final da guerra fria (pelo nome calculem a vontade de o cumprir), quando frequentei o curso de oficiais milicianos de infantaria em Mafra. Iniciei o serviço a digerir a visceral impressão “oh não, isto outra vez”, re-descobrindo uma inata e incómoda aptidão para os assuntos castrenses; porém com muito esforço, teatro e vários episódios caricatos consegui ser levado a uma junta médica de psiquiatria, saindo antes do tempo. Certo dia na especialidade que se segue à recruta cumpríamos uma semana de campo, executando um ataque em larga escala onde eu comandava as operações de transmissões, quando aparece de jipe o comandante da unidade e manda parar a “guerra”; vinha aí um ministro acompanhado de vários generais observar a nossa “brincadeira” que já estoirara uns milhares de contos ao erário público. A malta a formar para receber os distintos visitantes, o comandante passa por mim e sei lá como tive a ousadia de lhe dirigir a palavra para lhe perguntar quando recebíamos as bandeirinhas. “Bandeirinhas? Quais bandeirinhas?” – respondeu ele mais surpreendido pela interpelação do que pelo seu conteúdo; “as bandeirinhas para agitarmos à passagem das figuras ilustres”. Risota geral no pelotão, o comandante a mandar o Melo encher 50, e “despache-se que a comitiva chegou”. Acho que não contive o comentário porque andava sempre revoltado, farto de ser usado como carne para canhão de um circo montado para sustentar a vaidade e ordenados de figuras inúteis. Estava eu ali a levar a sério a minha missão, bastou alguém com poder mandar parar aquela palhaçada e ela pára. Em todo o tempo que lá andei perpassaram as impressões de “engano”, “esbanjamento de tempo e dinheiro”.

Nasce-se incendiário e acaba-se bombeiro.”

Mais tarde definiria a experiência da tropa como “se houver encarnações fui militar em quase todas”. Em várias tenho a impressão de estar a segundos de me finar e pensar “vou morrer por quem, pelo quê?” para voltar a cair na mesma armadilha na vida seguinte, que grande camelo. Muito bem, há séculos que absorvi o código militar: servir. O problema é que me cansei de ser o leal e acéfalo instrumento de interesses que no fundo não são meus nem dos meus. Pus a cabeça fora da matrix e percebi que estou farto, saturado de dedicar vidas às armas! Senti a desmobilização como uma vitória pessoal, contrariei um karma qualquer que me impelia a repetir um padrão estúpido, experimentado demasiadas vezes. Desta vez mudei o jogo, moldei o destino à minha maneira, escolhi representar o máximo de peças escritas por mim, auxiliado pelo que sabia não querer.

O bom senso é o senso do momento.”

Numa experiência quântica realizada no espaço em 2017 confirmou-se perante a comunidade científica que a realidade é aquilo que escolhemos que seja, ou como a minha filha candidamente concluiu em relação a um assunto trivial “cada um ilude-se como quer”. Apesar de a pandemia e a guerra na Ucrânia me tocarem a sensibilidade não sei se a realidade foi construída especificamente para mim, como alguns teóricos quânticos defendem, aliás nem sequer sei onde começam e acabam a realidade e a ficção, a sanidade e a loucura, se vivemos ou não numa simulação onde somos personagens de um jogo, se realmente escolhi o meu destino ou julgo que o escolhi, optando pelo que se esperaria. No ocidente a realidade é vivermos a invasão de um país soberano, na Rússia há uma operação especial em curso, na China a vida segue tranquila, o conflito vai parar à quarta página dos jornais. Cada um tem a realidade que lhe dão e talvez mereça, menos certamente 4,3 milhões de crianças deslocadas e 1,8 milhões que abandonaram o país, 3,7 milhões de refugiados maioritariamente mulheres e crianças. Um desastre.

Sempre existiram drogas mais potentes, mais calmantes, mais tranquilizantes, mais alucinógenas do que todas as drogas da farmacopeia antiga e da farmacologia moderna. Essas drogas-milagre são as palavras.”

Outro dia Putin organizou um mega-concerto num estádio em Moscovo onde se agitavam milhares de bandeiras russas, fazendo uma alocução emocionada em pleno palco à laia de pop star, sem teleponto visível, sem barreiras entre ele e o público, apenas um homem só, de corpo inteiro, coração aberto e rosto compungido à beira da lágrima. Que russo não teria orgulho no seu país e compaixão pelo seu líder? Na Ucrânia Zelensky, um antigo actor em “farda nº2” resiste à invasão, desdobra-se em apelos ao ocidente, entrando por video-chamada em todos os plenários importantes e espectáculos mundiais. O website financeiro Market Watch considera-o “um respeitado herói de guerra e um ícone cultural”. Que ucraniano não terá orgulho no seu país e no seu líder? A guerra e o show biz misturam-se, todos os agentes da informação ao entretenimento entendem a importância desta novela da vida real. Na quinta-feira vi na CNN Portugal os líderes da NATO reunidos em Bruxelas. O espectáculo abriu o telejornal e manteve-se uma boa meia-hora. Lá estava Boris Johnson à frente de uma parede estofada por dezenas de farfalhudas bandeiras, transportando numa lapela do casaco um pin da NATO e na outra o PIN da bandeirinha do Reino Unido agregada à da Ucrânia; lá estava Joe Biden com o pin da bandeira americana esforçando-se por articular coerentemente o passo, e lá estava António Costa com um pin da NATO na lapela. Munido da enfatuada confiança que o caracteriza quando se junta aos grandes, Costa garantia a jornalistas que “no território da NATO ninguém entra”. Imagino o secretário do Kremlin na outra ponta da mesa de 20 metros a ler para Putin a tradução das palavras de Costa e o grande líder a disfarçar um tremelique de medo… Depois da reunião dos membros da NATO reuniram-se os líderes do G7. Novamente imagino Costa sorridente à entrada do gabinete do G7 barrado pelo segurança qual porteiro de discoteca que lhe diz “desculpe, isto é reservado a clientes com cartão VIP” (no território do G7 alguns entram, não ele), enquanto o PM português se afasta a meditar no dito “amigos, amigos, negócios à parte”.

Segue o espectáculo informativo na Euronews mostrando o drama dos refugiados, a emotiva resistência dos que ficaram e, perdoem-me a frieza, a burlesca situação no terreno: após um mês de invasão uma das três maiores potências militares do mundo está a recuar. O que foi Putin fazer à Ucrânia, serão os russos assim tão hilariamente incompetentes? Afinal também é possível descobrir comédia neste drama. Recordo então um artigo que li na revista Sábado sobre Vitaliy um combatente luso-ucraniano que à pergunta “os russos estão mal preparados?” responde “nós é que estamos demasiadamente bem preparados. Eles só estão a conseguir segurar a guerra por causa do apoio pelo ar – porque se fosse corpo a corpo, eles já tinham ido com o caralho”… Ok, estou esclarecido e em bom português: lutar por um ideal sobrepõe-se aos superiores meios do inimigo, é o chamado princípio “padeira de Aljubarrota”.

Para compreender os paradoxos é preciso ser inteligente, mas para segui-los é preciso ser estúpido.”

Continua o telejornal na SIC com uma reportagem em directo de um “instituto científico” bombardeado, e quando a repórter perguntou ao director por que o instituto foi atacado, este respondeu “prefiro não dizer”. Corta para estúdio onde o jornalista acrescenta “o que é em si mesmo uma resposta muito esclarecedora”. Bom, admito que seja um g’anda totó mas confesso não ter ficado nada esclarecido, pelo contrário, assaltam-me mais dúvidas. Na quarta-feira o porta-voz do Pentágono negou insistentes acusações de Moscovo de que os Estados Unidos estivessem a financiar uma operação de guerra biológica em laboratórios na Ucrânia, apelidando-as de ridículas, “a típica propaganda de Moscovo”. Infelizmente nenhum dos lados me convenceu. A China que nunca explicou o grau de envolvimento do laboratório de Wuhan na propagação do covid19 vem agora pelo porta-voz do ministério dos negócios estrangeiros reforçar as acusações aos americanos, pedindo esclarecimento sobre as actividades de 336 laboratórios sob seu controlo em 30 países, incluindo 26 só na Ucrânia, devendo fornecer um relatório completo sobre as actividades militares do ramo biológico no seu território e no estrangeiro para serem sujeitas a verificação multilateral. Suponho que Washington negará a existência destas actividades como qualquer país o fará…

Tudo deve ser discutido. Sobre isso não há discussão.

Há indícios de existirem outras dimensões para lá da apresentada pela propaganda, onde se vampiriza um país de ricos recursos, internamente dividido por interesses e bandeiras, que em 2021 surge em 122º lugar entre 180 no índice de percepção de corrupção, atrás de países como Filipinas, Cazaquistão, Bielorrússia e… Brasil, não esquecendo que essa divisão esteve na origem do abate de um avião comercial em 2014. Sem contar com a Rússia (unida pelo medo/negligência popular tal como a Alemanha nazi) que surge empatada com Angola no lugar 136, a Ucrânia é o país mais corrupto da Europa, próximo só a Bósnia e a Albânia no 110º lugar. Imagino o que seria o espectáculo desta guerra se os envolvidos professassem religiões diferentes…

Temos de defender perspectivas que não partilhamos e impô-las ao público, lidar com questões que não entendemos e vulgarizá-las para a audiência. Não podemos ter ideias próprias, temos de ter as do editor, e mesmo o editor não as tem.”

No passado sábado o grupo de hackers Anonymous anunciou ter publicado 28 gigabytes de documentos depois de penetrar no sistema de segurança informático do Banco Central da Rússia. Além da divulgação dos documentos, o grupo acusou Putin de ser “mentiroso, ditador, criminoso de guerra e assassino de crianças”, deixando a ameaça em formato de vídeo que todos os segredos do líder russo serão revelados: “Vladimir Putin, nenhum segredo é seguro, estamos em todo o lado, no teu palácio, na mesa onde comes, no quarto onde dormes”. Como referi aqui há precisamente um mês, esta última ameaça deve ser o seu maior pesadelo, o grupo parece ter-lhe tocado na ferida. Imaginem a minha surpresa quando ontem num telejornal da RTP passaram o vídeo na íntegra e no final o grupo afirma isto: “a NATO, os Estados Unidos e a União Europeia são mentirosos. Só querem escravizar a humanidade. Todos têm acordos secretos”. A acabar prometem que “os inocentes do mundo inteiro não estão sozinhos”. Em todas as notícias pelas quais passei os olhos nem uma referiu o final da declaração! Agradeço o resumo que me fazem para não ter de pensar muito mas doravante quando quiser informação generalista vou procurar a RTP.

Pior do que inimigos, eles eram irmãos.”

Também no sábado estava no café quando se deu uma feroz cena de pancadaria entre dois irmãos digna da CMTV, partindo tudo ao redor. Segundo um dos presentes o motivo foram ciúmes por causa de uma mulher… Não sei se me fiz entender: tenho uma questão pessoal com a guerra, sobretudo a razão para se fazer; não suporto nesta ou em qualquer realidade ser arrastado pela sua falácia. Observo que os povos, às vezes até irmãos, são meros peões da propaganda que se esforça por nos dividir e isolar em uma das barricadas atrás de símbolos e bandeiras, e para isso cria-se um universo para cada um. É espantoso como na era da informação a manipulação parece tão fácil de exercer quanto em séculos passados. Estou convicto de que se alguém com supra-poder (e há) quisesse parar a farsa, ela parava. Continuando-a levanta a suspeita de haver mais ganho que prejuízo e pior, estarem-nos a ensaiar para algo realmente espectacular, um filme onde todos seremos actores à força.

O texto e aforismos em itálico são de Pitigrilli, pseudónimo de Dino Segre, jornalista, escritor e novelista italiano que tal como os protagonistas do show aqui referidos é uma personagem com um percurso discutível.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

Contact Us

Generalist media, focusing on the relationship between Portuguese-speaking countries and China.

Plataforma Studio

Newsletter

Subscribe Plataforma Newsletter to keep up with everything!