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Ao género das sátiras de Juvenal

É um assunto estranho nesta época do ano, o presente da corrupção da FIFA e do Qatar à civilização ocidental, não obstante volto a falar dele para o encerrar por ora.

Não se trata apenas de foot e ball ou “futchibol”, dentro e fora de campo o futebol compõe-se de um rico folclore que, enquanto consumidor de bifanas a pingar molho em roulottes, acho graça. Tem sons, cheiros, fumos, imagens estranhas, garridas, cómicas, umas vezes feira popular, outras circo de freaks. Só quem nunca passou pela mata do Jamor em domingo de final da Taça desconhece o quanto aquilo se assemelha à última página de um álbum do Astérix, quando a aldeia se reúne numa comezaina comunitária.

Na península dos romanos proliferam os Mancini, Martini, Marini, do outro lado do mar os Petkovic, Pasalic, Perisic, os patronímicos “filhos de” britânicos acabam em “s” como por exemplo os Williams, Roberts, Edwards, os portugueses igual, Rodrigues, Marques, Henriques, os espanhóis em “z” Rodríguez, Marquez, Henríquez, e por aí fora. Eu que tenho uma crónica dificuldade em fixar nomes noto o incremento da minha confusão quando os gladiadores portugueses da bola decidem juntar nome próprio e apelido. Como os novos são quase todos Brunos, Rubens, Diogos e Gonçalos, de cada vez que pretendo referir um jogador sou obrigado a pensar (pensar, mesmo) no seu nome, compondo um puzzle mental no momento em que falo, emperrando o fluir da conversação: Bruno + Costa? Não. + Silva?

Não. + Dias? Não. + Fernan… Sim é isso, “encaixa”: Bruno Fernandes! Agora imaginem o mesmo exercício para todos os Rubens, Diogos, Gonçalos… Acertar no nome à primeira só por sorte. Como se não bastasse os indivíduos em causa assemelham-se de aspecto, tanto que há uns anos desenvolvi a teoria de serem todos irmãos, filhos do mesmo pai, um obscuro dador de esperma do nuorte, carago. Gosto de conversas de café sobre futebol porém cansa-me pensar em nomes, a aclaração não vale o esforço das células cinzentas; num universo ideal cada interveniente nos debates transportaria dois dados no bolso, um para os 6 nomes próprios da bola mais comuns, outro para os 6 apelidos mais comuns e quando quisesse dizer o nome de um jogador recorria ao alea jacta est “eh pá, aquele gajo do Moreirense tem uma precisão de passe impressionante, oooo, espera aí (lança um dado) Rúben… (lança outro dado) Costa, Rúben Costa”. É giro, acrescentava diversão à conversa e ainda serviria para fazer apostas sobre o nome da próxima jovem promessa: “eu aposto em… (roda o dado) Gonçalo… (roda o outro dado) Dias, Gonçalo Dias, esse miúdo vai longe, g’anda jogador, hein?” Com a minha sorte ainda me saía um esquinado e teria de ficar na dúvida se o Diogo era Silva ou Fernandes. O método dos dados aproxima-se da perfeição, no fim de contas o assunto só serve emoções, racionalizar para quê? Alguma vez lograrei convencer do contrário alguém que acredita que o Diogo Silva é melhor que o Gonçalo Dias? Pois, veem a futilidade do exercício? E já repararam na dificuldade em esquecer nomes como Eusébio, Travassos, Chalana, Peyroteo, Nené… O Chalana chamar-se-ia Chalana dos Santos, Chalana Teixeira? O Nené seria Júlio Nené, Manuel Nené? Não interessa, n’é? Estes cromos da bola eram referências populares com as quais se podiam nomear os cães, e tinha graça; hoje põem-se nomes próprios aos cães e não tem graça nenhuma, mas ainda viverei para ver pior, a institucionalização do nome próprio e apelido em animais de estimação “Tomás Gonçalves: senta, seeenta, senta!”

Quanto aos brasileiros multipliquem por 21 a população de Portugal e elevem à 3ª potência por desconhecimento histórico, vagas de emigração de todo o planeta e falta de limites à liberdade criativa. O conceito é fantástico, à semelhança do americano, em teoria o brasileiro pode ser o que quiser, não está amarrado à rígida estratificação europeia, a prática é que lixa tudo. Os futebolistas brasileiros que vêm para Portugal têm uma estranha tendência para se chamarem Lucas ou Matheus (com h), a promissora mistura entre profano e sagrado, apóstolos e cantores sertanejos. Antigamente quando o seleccionador brasileiro precisava de substituir um jogador durante o jogo olhava para o banco, contava “um dó li tá” (não interessa quem, são todos bons) e calhava um Ronaldo, Ronaldinho, Ronaldão, Rivaldo, Rivaldinho, Rivaldão, Arnaldo, Arnaldinho, Arnaldão… Hoje ao seleccionador brasileiro que conte “um dó li tá” calha-lhe um Alisson, Richarlison, Ederson, Everton, Weverton, tudo “sons” e “tons” que os pais recriaram a partir do que viram ou ouviram na TV; dar um nome destes a um bebé pode garantir-lhe no futuro uma saliência adicional, a “classe” que a sonoridade anglófona confere em relação aos vulgares Zés Cariocas. Ainda há Rodrygo com y, Willian con n, Casemiro com e, Rhodolfo com h, nenhum tem relação com qualquer língua, mais parecem gralhas, e Alex Sandro, certamente um engano do escriba do cartório que percebeu mal, uma vez que a mãe pretenderia Alessandro; espero igualmente um dia ver um Lukas com k mas não de super-herói, e este é o momento de informar os leitores brasileiros que no português de Portugal “k” se diz “kapa”, não serve para carcarejar. Depois há os redundantes, já distintos à nascença mas como os donos são gente ansiosa sentem necessidade de adicionar bijouteria, glitters. Vejamos: antes de “O” Neymar alguma vez tinham escutado esse nome? Não, certo? É natural, soa a nome inventado. Então para que se faz ele chamar de Neymar Júnior, é para se distinguir de quem, do Neymar Sénior? Se houve outro Neymar ninguém deu por isso, igual a um colega da selecção, o Vini Jr, também nunca conheci nenhum Vini Sénior. Se são filhos de um homem com o mesmo nome, está provado que o agnome “Filho”, dantes muito usado no Brasil, caiu em desuso, substituíram-se os “Filhos” por “Júniores”. Compreende-se, um filho implica responsabilidade mútua entre pai e filho, um júnior é um grande apequenado, vestido de fatinho de marujo e segurando um chupa gigante, um pateta, um infantilizado, o reflexo daquilo em que a sociedade se tornou.

Os nomes dos brasileiros abarcam uma miríade de pormenores criativos, falhas, mutações, a correspondente semântica à evolução dos genes humanos. A febre pela distinção é compreensível, afinal no último jogo do Brasil reparei que aos 83 minutos saiu o 9, entrou o 25 e… era o mesmo tipo, juro! A diferença é que o 9 tinha o corpo cansado e o equipamento sujo, o 25 estava fresco e com o equipamento lavado. Mais, reparei que o 9 sentou-se no banco e os outros que lá estavam… eram iguais a ele, por Júpiter, serão clones? Eis o processo: eles acham-se pariformes, então para se distinguirem crivam-se de tatuagens, pinturas, cortes bizarros de cabelo, de sobrancelhas, de barba, ou seja, criam uma narrativa visual que creem única, e depois de tudo isto continuam iguais porque os outros fizeram exactamente o mesmo, maldição! Desconhecem que a origem do problema reside no baixo nível socio-económico que costuma favorecer a pobreza cultural. Após o Brasil ser eliminado um destes clones conseguiu descobrir espaço livre nas costas para tatuar as caras de dois colegas da selecção, e chamou-lhe “homenagem”. Ao ritmo da futilidade demonstrada aposto que esgotará o espaço disponível para tatuagens antes dos 30 anos, arrisca-se um dia a ter de fazer homenagens no ânus, se é que já não está ocupado com uma.

Falta de conhecimento histórico diria, porque um dos significados matriciais de “homenagem” é um juramento de fidelidade que prestava ao soberano o vassalo que recebia feudo. “Vassalo”, que bonito… Talvez seja esticar demais a famosa virtude que um futebolista deve possuir, a “humildade”, não? Estou para aqui a fazer juízos subjectivos e o
rapaz se calhar até tem um motivo bem prosaico: os colegas são concorrentes ao seu lugar e esta será uma forma de os ver pelas costas. Quanto às tatuagens per se acho melhor saltar o tema. Poderia fazer correr rios de tinta sobre o assunto mas como sou um europeu, portanto fruto de uma civilização greco-romana, e um bota d’elástico (só o termo já remete para “velhadas”) preso no tempo (4000 anos, cá está, sou mesmo antigo), os hieróglifos na pele são um tipo de demonstração que jamais me seduziu, e à imagem das civilizações que me formaram considero que as tatuagens se usam para penalizar escravos, criminosos e prisioneiros de guerra; pronto, dixit. Já os penteados dos futebolistas brasileiros são iguais à ambição por serem “sons” e “tons”, mostram um fascínio pelas tintas louras ou brancas e cortes imbecis. Não estou muito por dentro das trends, para mim o cabelo rapado de lado e atrás, deixando um tufo alcatifado no topo da cabeça como se fosse uma lambidela de vaca, faz-me lembrar o Butthead (tradução literal: “cabeça de cu”) da série de animação Beavis & Butthead da MTV nos anos 90, protagonizada por dois adolescentes retardados que passavam o dia em frente à televisão. Aparte a questão estética, só pelas referências que tornam o penteado idiota eu nunca o usaria e talvez o meu problema se deva à idade: possuo demasiada informação acumulada para fechar os olhos a muita coisa. Na década seguinte a esta série surgiu um penteado ainda pior, o do Ronaldo “fenômeno”, todo rapado excepto
numa pala de cabelo triangular por cima da testa; a estupidez é a mesma, os estilos, cíclicos, portanto admito que esta venha a ser a próxima tendência. Ronaldo retirou-se, tem 46 anos, já não usa o icónico penteado (porque será?) e numa surpreendente tirada, Kaká, ex-companheiro de selecção afirmou que hoje no Brasil “Ronaldo é só mais um gordo andando na rua”. Decerto pretendeu insurgir-se contra a falta de reconhecimento do povo pelo ídolo, mas inadvertidamente lastimou-se de um facto da vida do show biz: sem o permanente alimento de excentricidade as novas gerações que vão surgindo tendem a esquecer a vedeta do momento, até o seu eventual valor. Se os “Sons” e os “Tons” cessarem de introduzir “novidades” na maneira como se apresentam, e sobretudo quando pararem de jogar, a sua lembrança desbotar-se-á por acção do tempo até desaparecerem os vestígios de qualquer som ou tom. Enfim, se fosse jogador preferiria ter um ar “humildemente vazio” do que escancarar o meu vazio embora também me considerassem um excêntrico, pelo menos é o que eu acho do Francisco Geraldes que sendo suplente punha-se a ler livros no banco do Sporting; “atão”, ’tá maluco, ou quê? Note-se que a parafernália de apalermadas considerações que teci é comum a qualquer jogador de qualquer selecção actual, não exclusiva dos lusófonos.

Invariável conforme a nacionalidade segue o discurso padrão do futebolista que perde: “há que levantar a cabeça, não atirar a toalha ao chão, continuar com humildade a trabalhar todos os dias pelos nossos objectivos”. Depois temos os que sobem uns degraus na escala social continuando mentalmente amarrados à pobreza mas não são burros, vivem sob o estigma da origem, desconfiados do outro, atentos ao mínimo sinal que julgam de crítica; à pergunta na flash interview “a equipa hoje esteve bem?” respondem “não, a equipa hoje esteve bem”, à pergunta “ficou provado que querem mais?” respondem “não, ficou provado que queremos mais”. Aceitar o que o outro diz? Nunca, defender-se primeiro; pensam que ele é parvo? Eis a regra: desconfiar sempre, negar à partida e só depois ver para onde a coisa vai. Vários jogadores das selecções que iam sendo eliminadas afirmaram “acabou-se o sonho” e vários argentinos disseram que vencer a final foi o “concretizar de um sonho”. Muito sonha esta gente… Será que os andróides sonham com ovelhas eléctricas? Quem vive na pobreza, 25% da população mundial, só tem pesadelos.

É verdade, tal como referira no último texto a final disputou-se entre a Adidas e a Nike; ganhou a Adidas. Num patamar abaixo da competição, a que produz o folclore que os níveis superiores exploram para ganhar o que interessa, o rebuçado psicológico calhou a uma nação absolutamente fanática por futebol, constituída por 40% de pobres que assim puderam mitigar a realidade por uma semana; têm Messi, talvez o jogador com o maior talento natural que já vi para este desporto, e que graças a ter vencido fiquei finalmente a conhecer a sua voz, nunca antes o ouvira. Contudo esta selecção trilhou meio caminho para a vitória por acção da genial estratégia do seu seleccionador, afogando tacticamente o seleccionador francês; a ideia de Scaloni correu risco apenas devido à acção de outro jogador que se me afigura há alguns anos como o próximo número um do mundo, Mbappé, um colosso à semelhança de Ronaldo e curiosamente seu fã. Tem os mesmos predicados e sustenta-se nos mesmos princípios, logo quando o vigor físico falhar, o rendimento desportivo mergulhará em queda livre. No patamar mais alto nem houve competição, ganhou quem tinha a organização do torneio e os cromos da bola no bolso, o Emir do Qatar, fundador da Qatar Sport Investments, dona do Paris St Germain que por um mero acaso é o clube onde jogam as duas maiores vedetas, os dois protagonistas da final, Messi e Mbappé, a jogarem em campos opostos. Para o que desse e viesse o PSG também tem a maior vedeta do Brasil, vários seleccionados de Espanha, Portugal, um marroquino… Os povinhos tesos choraram ou fizeram a festa, as famílias ricas nem se digladiaram, ganharam principescamente
enquanto manipulavam as nossas diferenças. Messi e Mbappé são realmente “vassalos” do mesmo sheik, instados a lutarem um contra o outro para seu deleite e lucro ahahahah…

Mais uma vez, pode ser da minha cultura, para mim o desporto é uma ritualização da guerra e o que vi foi um coliseu romano dedicado a Marte com gladiadores vindos de todo o Império, onde durante um mês, à falta de pão para o povo, a elite mundial entreteve-a com circo, e eu contribuí prosando sobre os jogos…

*Embaixador do Plataforma

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