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Guia básico para criar um sucesso musical – 2ª parte: a letra

João MeloJoão Melo*

Na semana passada dei-vos música, hoje versarei a letra. Se for em inglês, uma língua pouco mais que monossilábica, é fácil: I-am-you-are-she-is-in-love (love reduz-se a uma sílaba) my-eyes-your-mouth-a-kiss… Palavras com duas ou três sílabas pelo meio compõem o ramalhete, dão-lhe ritmo e colorido. No caso de a métrica requerer mais uma sílaba existe sempre a bengala do “yeah”.

É como um LEGO: com peças de um e dois pinos podem-se construir 3, 4, 5, 6, 7… Com peças de 4 só dá para edificar nos seus múltiplos, 8, 12, 16… As palavras em inglês, curtas e de vários sentidos que por vezes apenas se definem na presença de outras palavras (lembram-me o mandarim) prestam-se a serem arrumadas em estruturas modulares rígidas. Um dia pedi à minha filha pré adolescente para fazer uma resenha dos temas mainstream preferidos em inglês; peguei numa frase da letra de cada tema e atribuí-lhe um número de 1 a 12. Depois lancei dois dados e conforme o número que saísse ia escrevendo uma letra com as frases correspondentes; quase todas as possibilidades tinham nexo. Compus um ciclo de 4 acordes no computador e pedi para ela cantar as frases usando o auto-tune no máximo da afinação, adicionando reverberação e delay à voz. Criei um potencial sucesso para as pistas de dança visto que nas discotecas os temas encadeiam-se uns nos outros, a trave mestra do sucesso nesta área é o cliché, uma peça demasiado estranha não encaixa nas outras. Se for um artista pop português a compor originais em inglês, parabéns pela infantilidade. Porquê? Porque ou acredita que dará o salto para o mercado internacional, coisa que nunca acontecerá a menos que estabeleça a sua base num país com indústria de entretenimento, não de artesanato como o nosso, ou então vive num universo de fantasia replicado da realidade das vedetas do music business; no fundo é um fã com o sonho menor de ser um dos seus ídolos. Único cuidado a ter com o inglês: após anos de pesquisa ainda não descodifiquei os mecanismos que conduzem à misteriosa tendência dos portugueses, sobretudo de gerações mais antigas, para acrescentarem o som aspirado do “h” onde ele não existe, por exemplo “She is” (Xi hhize), e a eliminarem-no quando ele existe como em “She has” (Xi éze)… É capaz de soar tão caricato a um nativo de inglês quanto ouvi-lo trocar os géneros masculino e feminino em português.

Embora se assista a uma globalização do imperialismo anglófono, infundindo os seus modelos pelos sítios mais recônditos, para cantar noutra língua cumpre considerar especificidades regionais. Estudos de mercado mostram que em Espanha o sabor favorito dos consumidores é o limão. Imaginemos que vamos aqui ao supermercado comprar um iogurte; qual é o sabor? Iogurte de… de… morango! Voilá. Os espanhóis gostam de fritos e de petiscar nós apreciamos o muito doce ou muito salgado. Assim um título de sucesso em Portugal pode ser “Morangos com Açúcar” e em Espanha é melhor chamar-lhe “Tapas com Limões”. Veem como funciona? Os temas nunca se deverão ocupar da racionalidade e sim dos sentidos: aromas, sabores, vislumbres, sensações, deleites… Irracionalidade também é bem-vinda, palavras ou frases sem sentido, grunhidos, gemidos, suspiros e lá lá lás. Se pretendermos tratar o quotidiano sigamos o exemplo da bandeira republicana verde e vermelha, um gritante contraste; se quisermos expressar o indizível trilhemos os caminhos da bandeira monárquica, azul e branca como a alma. Letras que em Portugal contenham a palavra “azul” conduzem à contemplação poética: mar azul, céu azul… Letras incluindo “feitiço” ou “feiticeira” produzem magia nas emoções, somos enleados pelo seu fascínio. Outros exemplos de boas palavras: amor, paixão, desejo, noite, mistério. Nota importante: as letras mais apreciadas costumam referir o corpo ou partes dele, em especial as vísceras coração e olhos. Há muito tempo tentei escrever uma letra apelando a imagens de tristeza e solidão mas desisti, acabei a galhofar e nunca a usei; uma passagem dizia “o blusão no cabide, a garrafa vazia no chão…” Imaginem a minha surpresa quando anos depois ouvi uma música do Pedro Abrunhosa com estas exactas palavras! Qual a diferença? As palavras são as mesmas, a diferença reside na atitude, na fabricação de narrativas e posturas que certificam estarem a ser levadas a muito sério, por maior banha da cobra que sejam, um aspecto que desenvolverei na terceira parte deste guia. Frequentemente a letra ajuda a definir a ideologia de um género devido à limitação de rimas e suspeito que o fado seja um desses casos: quanta vida bizarra não ficou associada ao meio fadista em virtude do nome do seu instrumento principal? Quantas vezes não ouvimos o fadista cantar o adjectivo “bizarra” para dois versos depois esbarrar no substantivo instrumento? 

A língua portuguesa é rica e complexa, uma delícia para quem escreve poesia, uma maçada para quem pretenda espartilhá-la nos quadradismos da música pop. Daí alguns preferirem o inglês, não só parece mais credível como permite escapar à dificuldade de transmitir autenticidade. Na mesma língua o receptor entende melhor o emissor e isso às vezes não convém, convém mais a forma que o conteúdo. A quem assume o português acontece, até aos melhores, a chamada prosódia, uma incorrecta acentuação silábica. Ainda que o som da música e das palavras flua, logo que surge um destes acidentes instala-se um dique do qual a minha atenção não se liberta. São vários os casos de excelentes letras encaixadas à martelada numa estrutura RnB, como o final de um refrão onde se canta “p’ra te le-var (acentuando o “le” em vez de “var”) ao concerto que haviâ (acentuando o “a” final em vez do “i” anterior) no Rivoli”. Um dia pediram-me a opinião sobre um projecto de dance music em português que se gravava no mesmo estúdio onde trabalhava. Fiz notar ao produtor, um luso-canadiano, que as vozes estavam cheias de erros de prosódia. Sorriu complacente retorquindo que Portugal tinha uma mentalidade muito conservadora, ahahah. Já que o postulado gramatical não se ajeitava aos seus intentos atropelou-o sem contemplações. É deploravél não estarmúz abertúz à mú-dança… Noutra ocasião compus e produzi um trabalho em português sobre uma série de animação estrangeira. Não sei quem adaptou a letra do génerico da TV, ela havia sido cantada pelo director de dobragens e tinha erros de prosódia. Estranhando que um indivíduo com estas qualificações não percebesse, para não o ofender sugeri re-gravar o genérico como se fosse um capricho do meu ego. Não foi necessário alterar a letra, apenas cantá-la de maneira diferente. No final ele comentou que soava muito melhor. Aproveitei para lhe explicar a razão, desconhecia o motivo, e talvez a partir daí tenha cumprido melhor as suas funções.

Havendo tanta gente no mundo esgotou-se a novidade no uso de palavras e imagens que elas sugerem, no entanto alguns inteligentes esforçam-se por criar equações do género “gosto de ti daqui até à Lua e da Lua até aqui”. Do mesmo modo se criam em laboratório novos elementos atómicos, unindo átomos de substantivos e adjectivos que no meio natural não se ligariam. Poucas destas criações mantêm a sua invulgar estrutura atómica, geralmente desfazem-se mal passe a moda, afinal nunca tiveram sentido, alma ou intenção. Como diria Fernando Pessoa “não sei o que faça, não sei o que penso, o frio não passa e o tédio é imenso. Dorme coração”. Por mim estou dormente faz algum tempo…

Importante nota final que tanto serve para a letra e música como para tudo: quem sabe ou tem talento nem pensa nisto mas quem não os tem devia ter sempre presente a noção de que é muito simples complicar e muito complicado simplificar, por isso gasto tanto tempo, é que ser simples dá-me uma trabalheira imensa. Mesmo no rap, um género sustentado na verborreia e cada vez mais dominado por artistas padecendo da síndrome de Tourette, é mais eficaz quem usa o princípio da simplicidade, Gabriel o Pensador prova-o. Tendo noção da dificuldade, ao longo da minha carreira tentei seduzir os melhores executantes para as minhas ideias e tive a sorte de o conseguir. Um dos temas de maior sucesso que compus será na verdade um dos mais simples mas fora da banda raramente o ouvi bem tocado. É o clássico erro de confundir simples com fácil; umas vezes soa a charangada pela evidente incompetência dos executantes, outras a pastelada por tentarem disfarçar essa incompetência, complicando; nunca soa leve. Em ambos os casos falta know how para abordar com segurança o básico. Como é igualmente tido como “divertido” acrescenta uma nova dificuldade: cada traço que lá está foi desenhado por alguém que tem “escola” e passou anos “a virar frangos”, tentar copiá-lo sem esse conhecimento resulta numa caricatura de mau gosto. Os melhores exemplos de simplicidade/genialidade na música popular em português encontram-se nas obras de vários autores brasileiros, Caetano Veloso é um deles, e na de José Afonso. Aquilo nasce perfeito, o que é típico de génios: recebem do Campo a mensagem como todos nós porém sabem transmiti-la, parece que sem interferências, e se realmente passam pelo seu crivo pessoal significa que estão num patamar acima de desenvolvimento humano.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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