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O vírus não toca a todos da mesma forma

Alma Rivera*

Não seria necessária uma pandemia para olhar o Mundo e a crueza da injustiça, mas se há algo em que a COVID-19 foi exemplar foi a escancarar as portas de uma realidade estruturalmente desigual.

Não «estamos todos no mesmo barco» nem estávamos quando tudo isto começou. A desigualdade é gritante e, como sempre, a pandemia castigou bem mais quem menos tem, quem vive do seu trabalho e quem já estava em situação de exclusão social ou vulnerabilidade.

Mesmo entre países foi evidente a diferença na resposta entre estados com serviços públicos fortes e estados onde a lei da selva (do mercado) rege os direitos fundamentais como a saúde ou a segurança social.

Da mesma forma, em Portugal não «ficámos todos bem» e foi por isso que o PCP interpelará esta 6ª feira o Governo sobre a proteção, os direitos e os salários dos trabalhadores, no atual contexto económico e social.

A realidade é que ainda surgiam os primeiros casos de coronavírus e já se adivinhava quem pagaria a fatura. Os trabalhadores com vínculos precários como é o caso dos trabalhadores das empresas de outsourcing ou os “falsos recibos verdes” foram os primeiros a ser despedidos sem sequer serem contabilizados como tal. E assim, no momento em que todos mais precisam de segurança, foram simplesmente dispensados. Seguiram-se os despedimentos coletivos (entre Março e Junho já foram iniciados 263 processos) e contabilizam-se 133 mil novas inscrições no centro de emprego.

O perigo do vírus esteve e está mais presente na vida daqueles que nunca pararam, mantendo o país a funcionar, enfrentando os transportes públicos sobrelotados (algumas destas empresas de transporte em regime de lay-off apesar das necessidades evidentes), sem distâncias de segurança entre passageiros. Trabalhadores, na sua maioria, mal pagos, corridos a 635 euros e, mesmo estando “na linha da frente” sem direito a qualquer compensação ou subsídio de risco.

O “estado de emergência” foi utilizado para condenar os que participaram na ação do Dia do Trabalhador da CGTP-IN, mas nem por isso serviu a esses trabalhadores quando se tratou de assegurar que as condições de higiene e segurança fossem cumpridas nas empresas. E de facto, em empresas como a SONAE, que usam e abusam da precariedade apesar dos milhões de lucro, despontaram graves focos da doença.

Não «vamos ficar todos bem» mas isso deve-se às opções políticas tomadas ao longo de décadas e que se mantiveram na resposta ao vírus.

Milhares de trabalhadores foram enviados para “teletrabalho”, com a hercúlea tarefa de dar assistência aos filhos em simultâneo. As crianças passaram a ter aulas virtuais, mas rapidamente se concluiu que o acesso às tecnologias não é afinal tão democrático: um estudo da Universidade Nova concluiu que 23% dos alunos até ao 12.º ano não têm acesso a computador com internet em casa. Apesar do esforço dos professores, dificilmente conseguirão acompanhar.

Seguir o conselho sanitário “fica em casa” é aliás muito diferente entre famílias, tornando-se um verdadeiro pesadelo para muitas delas, atiradas pelo mercado da habitação para casas sem dimensão ou mesmo insalubres. E mesmo no seio das famílias, as mulheres são particularmente afetadas: são quem ganha menos e quem tem vínculos 30% menos estáveis e prestam, no universo da UE, 70% de todos os cuidados informais. Têm muitas vezes o mundo às costas e são as principais vítimas de violência doméstica, que se agravou com o confinamento.

Não «vamos ficar todos bem» mas isso deve-se às opções políticas tomadas ao longo de décadas e que se mantiveram na resposta ao vírus.

Quando se tratou de definir uma estratégia para responder à crise, o Governo apostou tudo no lay-off simplificado. Metade das grandes empresas recorreu a este mecanismo, como a Inditex ou a IKEA, estando o Estado a pagar o grosso dos salários a estas empresas, ao mesmo tempo que estas ficam dispensadas do pagamento da TSU. Desta forma o que falta aos trabalhadores (milhares com o salário a dois terços) e às micro e pequenas empresas, é apropriado pelos grandes grupos económicos. Aliás, PS, PSD, CDS, IL (com o contributo da ausência do CH) contribuíram para chumbar a proposta do PCP que excluía dos apoios públicos empresas em paraísos fiscais. E assim se comprova uma vez mais que entre trabalho e capital, apenas o primeiro é chamado a sacrificar-se

Para combater a desigualdade são precisas rupturas com as opções políticas de submissão ao capital económico e financeiro. Há lições a retirar desta pandemia: a importância do papel dos trabalhadores e a centralidade do trabalho na sociedade; o papel dos serviços públicos e, em particular, do Serviço Nacional de Saúde; a importância da produção nacional e a necessidade do País não prescindir do objectivo de assegurar a sua soberania alimentar e ter os sectores estratégicos nas mãos do País. Saibamos ler o passado recente do nosso país para encontrar um caminho que, valorizando a força motriz do país – os seus trabalhadores, responda aos desafios imensos com que nos colocamos.

*Alma Rivera, Deputada do Partido Comunista Português à Assembleia da República (Portugal)

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