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Anticorrupção reforça Xi Jinping

Em 1946, no início da Guerra Fria, o encarregado de negócios norte-americano em Moscovo identificava a incapacidade da sociedade em organizar-se fora da estrutura monolítica do poder soviético como a maior fraqueza daquele sistema sociopolítico.

Num telegrama dirigido ao departamento de Estado, George Kennan descrevia o regime então dominado por Estaline como uma “crosta que oculta uma massa amorfa de seres humanos, entre os quais nenhuma estrutura organizacional independente é tolerada”. “A atual geração de russos nunca conheceu a espontaneidade da ação coletiva”, escreveu.

No ano em que ultrapassa em longevidade a antiga congénere russa, a República Popular da China parece ter superado muitas das fraquezas do projeto soviético. No entanto, aquela contradição subsiste – e amplifica-se -, à medida que a atual liderança chinesa reforça o caráter totalitário do regime. Sob a presidência de Xi Jinping, que ascendeu ao poder em 2013, a política chinesa voltou a um modelo “patriarcal”, em que o “poder se concentra num líder tipo imperial e não nas instituições”, descreveu o sinólogo norte- -americano David Shambaugh.

Shambaugh reconheceu Xi como um líder “confiante” e com uma “visão coerente para o futuro” da China, mas não tem dúvidas: o desmantelamento das reformas feitas por Deng Xiaoping há trinta anos, que apoiaram a República Popular sobre uma base institucional e de procedimentos, evitando os excessos maoistas que quase destruíram o país, abriu um “precedente muito perigoso para o futuro”.

Só nos últimos 20 anos, a riqueza per capita da China quadruplicou, num “milagre” sem precedentes na História moderna. Outrora mergulhado na pobreza e isolamento, o país asiático converteu-se na segunda maior economia mundial, ostentando hoje linhas ferroviárias de alta velocidade e modernos parques industriais e infraestruturas. Num esforço liderado pelo Estado, a China ameaça destronar os Estados Unidos da posição que mantêm há 70 anos como líderes em inovação científica e tecnológica.

A iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” prevê ainda reforçar o entrosamento entre Pequim e mais de cem países, ao longo do sudeste asiático, Ásia Central, África e Europa – não através da defesa do internacionalismo proletário, como fez a defunta União Soviética, mas acenando com milhares de milhões de dólares para infraestruturas, que visam redesenhar vias comerciais globais, colocando a China no centro.

O progresso alimentou a convicção entre muitos chineses, inclusive nas gerações mais jovens e viajadas, de que o modelo de desenvolvimento da China é superior ao do Ocidente democrático: a estabilidade política, defendem, é o valor mais importante, porque é a base da prosperidade económica – e sem prosperidade económica não há esperança para outros direitos individuais.

“Estado paranóia”

No entanto, o Partido Comunista Chinês (PCC), que governa o país desde 1 de outubro de 1949, voltou a viver num estado de “constante paranoia” sob a liderança de Xi Jinping, descreveu o jornalista australiano Richard McGregor.

Assombrado pela primavera árabe, que derrubou Governos aparentemente invencíveis e, sobretudo, pela implosão da decrépita União Soviética, em 1991, o PCC voltou a penetrar na vida política, social e económica da China, restringindo a influência de ideias estrangeiras e a competição económica. “Ignorar a história da União Soviética e do Partido Comunista Soviético, esquecer Lenine e Estaline, e o que se passou, é niilismo histórico (…) e confunde os nossos pensamentos”, defendeu Xi, num discurso feito nas vésperas de ascender ao poder, em 2013. “Um grande Partido desapareceu, assim de repente”, lembrou. “Proporcionalmente, o Partido Comunista Soviético tinha mais membros do que nós, mas ninguém foi homem o suficiente para se levantar e resistir”.

Desde então, o aparelho de segurança do regime passou a contar com olhos em todo o lado: cerca de 200 milhões de câmaras de vigilância foram instaladas nas principais cidades do país, segundo dados oficiais, muitas dotadas de reconhecimento facial.

Uma campanha contra dissidentes resultou já na detenção de 250 advogados ou ativistas dos direitos humanos. Dezenas foram condenados a pesadas penas de prisão por “subversão do poder do Estado”.

O PCC estabeleceu também comités em 70 por cento das empresas privadas e ‘joint ventures’, e conseguiu restringir a influência externa na sociedade: uma lei aprovada há dois anos, por exemplo, praticamente eliminou as organizações não-governamentais estrangeiras a operar no país.

Dentro do Partido, Xi lançou a mais ampla campanha anticorrupção na história da China comunista, resultando, até à data, na punição de mais de 1,5 milhão de funcionários, incluindo centenas de altos quadros e altas patentes do exército, alguns condenados à pena de morte.

O PCC tem 90 milhões de membros, mas excluindo camponeses, idosos ou reformados, quase todos poupados, a campanha anticorrupção equivale a uma limpeza geracional, que antecedeu uma concentração de poder em Xi sem paralelo nas últimas décadas. Em 2017, o atual líder chinês aboliu o limite de mandatos para o cargo, criou um organismo com poder equivalente ao Executivo e Judicial – a Comissão Nacional de Supervisão -, para supervisionar a aplicação das políticas, e promoveu aliados a posições chave do regime.

A visão de poder de Xi como um mecanismo absoluto e opressivo foi, segundo o próprio, forjada durante a adolescência, passada no árido e pobre noroeste chinês, seguindo um fluxo de jovens urbanos para as aldeias do interior para “aprenderem com os camponeses”, parte de uma radical campanha de massas lançada por Mao Zedong.

“As pessoas que têm pouca experiência com o poder, aqueles que estão longe dele, tendem a considerá-lo algo de misterioso e nobre”, disse numa entrevista, publicada em 2000, quando era governador da província de Fujian.

“Mas eu vejo além das coisas superficiais: o poder, as flores, a glória e os aplausos. Eu vejo centros de detenção e a volatilidade da natureza humana. Isso deu-me uma compreensão da política a um nível mais profundo”, realçou.

Mas será também esta desconfiança na afirmação e liberdade do indivíduo que continuará a levantar incógnitas sobre o futuro da República Popular da China, se tida em conta a previsão de Kennan sobre o futuro da União Soviética, cumprida quase cinquenta anos depois.

“Se a unidade e eficácia do Partido como instrumento político for alguma vez perturbada”, apontou então, “a Rússia soviética passará, da noite para o dia, de uma das mais fortes para uma das mais fracas e lastimáveis sociedades”.

João Pimenta 04.10.2019

Exclusivo Lusa/Plataforma Macau

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