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“O produto de medicina chinesa pode vingar no espaço europeu”

Frederico Carvalho é o diretor do Instituto de Medicina Tradicional (IMT) de Portugal. A instituição é parceira do Parque Científico e Industrial de Medicina Tradicional Chinesa Macau-Guangdong desde há dois anos e está a mediar contatos para que os produtos deste sector consigam chegar aos consumidores europeus.

– Em 2015, o IMT estabeleceu uma parceria com o Parque Científico e Industrial de Medicina Tradicional Chinesa Guangdong-Macau. Qual é a base desta parceria e em que resultados práticos se tem traduzido?

Frederico Carvalho – Já fizemos uma série de eventos. O mais recente foi agora mesmo em junho, um fórum de medicina tradicional. E, daqui para a frente, dentro desta linha, um conjunto de atividades vai continuar a ser planeado para a promoção da cultura e da medicina tradicional chinesa nos países de língua portuguesa, e em particular em Portugal. Noutro tipo de atividades que fazemos com o parque, ainda agora está a decorrer um curso em Moçambique com uma formadora do Instituto de Medicina Tradicional de Portugal, em colaboração com o parque e com o Instituto de Medicina Tradicional de Moçambique. Já é a segunda edição deste programa de formação para fisioterapeutas e médicos de Moçambique. São cursos que visam capacitar os técnicos de saúde do Ministério de Saúde de Moçambique nalgumas técnicas que possam coadjuvar o que já fazem, para nas suas ferramentas de trabalho poderem incluir algumas práticas de medicina chinesa que possam ser úteis nos cuidados de saúde primários. Há uma série de intervenções das quais tem sido demonstrada utilidade. Tem sido de facto um trabalho muito compensador. Em Portugal, temos feito um trabalho mais de divulgação da própria medicina tradicional junto do público em geral, junto do público especializado de medicina chinesa e junto dos profissionais de saúde. O fórum do mês passado foi uma coorganização – nós, o Parque Científico e Industrial e a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. Foi um momento único na história da saúde em Portugal. Foi a primeira vez que uma instituição de medicina mais convencional se associou amplamente e o resultado foi muito positivo. 

– Para além do curso de Moçambique estão planeadas iniciativas noutros países de língua portuguesa?

F.C. – Ainda não está planeado. No entanto, é uma ideia que já foi focada várias vezes juntamente com o parque, a de potenciar destas atividades na Comunidades dos Países de Língua Portuguesa. O parque é, no fundo, o parceiro do Fórum Macau para a implementação de atividades relacionadas com medicina chinesa, e nós somos o parceiro do parque para fazer chegar essas mesmas atividades aos países de língua portuguesa. Esta é a nossa relação, que visa para os próximos anos um aprofundamento, até porque o parque nos últimos tempos está a ter um desenvolvimento muito mais acentuado. Nomeadamente, com a finalização das obras. Em setembro, haverá a apresentação da plataforma pública de apoio que o parque quer dar aos países de língua portuguesa para a promoção da medicina chinesa.

– São uma entidade que atua na área da formação mas, tendo o parque a vertente industrial, que potencial pode esta ter na relação convosco?

F.C. – Temos assistido o parque na realização de protocolos de colaboração com entidades governamentais portuguesas e com associações do setor do medicamento, da investigação, dos suplementos alimentares. Fomos mediadores de vários acordos. Uns já se fizeram, são públicos, e outros que se pretende fazer no futuro. O nosso principal interesse no que diz respeito aos produtos é, por um lado, garantir que os produtos de medicina chinesa entram no espaço europeu através de Portugal pela porta certa. Ou seja, que são devidamente enquadrados, devidamente regulamentados, devidamente adaptados à legislação europeia e à legislação portuguesa em particular. Por outro lado, queremos garantir ao público português que, nas áreas da medicina chinesa, acupuntura e fitoterapia, este tem acesso a produtos de qualidade, que venham com a chancela de qualidade do parque científico de Macau. Estamos a assistir à circunstância de Portugal estar a autorizar que os profissionais de acupuntura, fitoterapia e medicina tradicional chinesa possam trabalhar. Uma vez que o Estado português, através da Administração Central dos Serviços de Saúde, está a emitir cédulas profissionais de, pelos menos acupuntor e de fitoterapeuta  – ainda faltam os técnicos de medicina tradicional chinesa –, estas pessoas vão poder trabalhar. Se podem trabalhar, faz parte do seu descritivo profissional a prescrição de fitoterapia. Ainda não existe muita fitoterapia em Portugal, e o que existe são mais suplementos alimentares do que medicamentos à base de plantas inscritos como tal pelo Infarmed. É todo um caminho que ainda é preciso fazer. Estas pessoas são profissionais reconhecidos, querem começar a trabalhar, e parte do seu trabalho é a prescrição de produtos sobejamente conhecidos na China há muitos anos mas que ainda não conseguiram entrar no mercado europeu. 

– Estão a prestar consultoria técnica ao parque para a entrada neste mercado?

F.C. – Uma consultoria que permita ajudar a própria indústria chinesa a entrar no mercado português, mas, mais do que isso até, a encontrar os parceiros certos. Nesta área é muito importante encontrar as parcerias e as instituições certas que levem a bom termo esta intenção de entrar legitimamente no mercado europeu. Para o poder fazer, a indústria precisa de ter acordos e precisa de estar bem-relacionada com as instituições portuguesas. Neste sentido, temos ajudado com a Associação Portuguesa de Suplementos Alimentares, com a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária – agilizámos esses acordos. Temos apresentado o parque à indústria portuguesa. Até mesmo com a Direção-Geral de Saúde temos sido um elo de ligação. O nosso papel é de mediador e potenciador de boas relações institucionais. 

– Quais são os principais desafios, do ponto de vista da regulação europeia do medicamento e também do da atuação do Infarmed em Portugal, à entrada destes produtos neste mercado?

F.C. – O enquadramento europeu não visa impedir a entrada, visa é regular essa entrada. Na China passa um bocado a ideia de que há aqui um protecionismo europeu. Não é verdade. O que se pretende é fazer com que o produto, ao entrar no espaço europeu, pura e simplesmente obedeça às regras dos espaço europeu. Nesse aspeto, os principais desafios são essa compreensão de que é importante adequar a forma de produção, a forma de embalamento, e a forma de fazer investigação ao mercado europeu. É um mercado muito grande para este género de produtos, mas, mais do que isso, é neste momento muito apetecível. O produto de medicina chinesa pode vingar bastante no espaço europeu. Ainda por cima, em Portugal há agora regulamentação específica para os profissionais que prescrevem estes produtos. É a melhor porta de entrada, efetivamente. Permite que chegue aos mercados de língua portuguesa e ao mercado europeu um tipo de produto que ainda não é conhecido. O produto tem várias possibilidades. Pode entrar como suplemento alimentar, num registo simplificado e mais fácil, mas não sendo um produto de saúde, tendo venda livre nos supermercados. Outro caminho é ser um produto de saúde, tendo de entrar em Portugal pelo Infarmed. Há regras científicas para isso, não é impossível. Depois, dentro do medicamento há vários tipos: à base de plantas medicinas; tradicional. É aqui que podemos colaborar, na definição do melhor caminho. Talvez para determinado industrial chinês ou de Macau seja preferível entrar como suplemento.

– Onde as regras são mais flexíveis.

F.C. – São mais flexíveis. É uma questão de olhar para a própria indústria, para o próprio negócio, e para a linha de produtos que se tem, e perceber qual é a intenção. E a partir daqui tomar uma decisão estratégica sobre o que entra primeiro: apostar tudo em suplementos; apostar parcialmente em suplementos e medicamentos pela via do Infarmed.

– Além de ser uma oportunidade, o mercado europeu é também provavelmente o mercado mais rígido na regulação. Do que conhece da indústria medicinal chinesa, parece-lhe que os padrões estão em linha com estas regras?

F.C. – A evolução tem sido muito rápida — o que é bom e mau. Quando há um  desenvolvimento muito rápido de uma determinada indústria pode acontecer, e acontece, esse desenvolvimento rápido não permitir a estabilização de processos ou um acumular de experiência, saber e documentação que é necessário, por exemplo, para medicamentos à base de plantas. Para entrar um medicamento, ele tem de estar muito bem sustentado do ponto de vista documental. E às vezes um crescimento demasiado rápido não o permite.

– Os estudos, ensaios…

F.C. – Exatamente. É essencial que haja uma ligação com as universidades, com a investigação, com parques industriais, que permita que haja uma sustentação científica do crescimento. Outro aspeto que é muito importante para a Europa é tornar conhecido esse crescimento, porque aqui não chega a informação. Eu visito a indústria chinesa quando vou à China e vejo com os meus olhos o grande desenvolvimento que o medicamento tradicional chinês tem tido na China. Mas essa informação não chega aqui. É importante que a indústria chinesa perceba que uma das formas de fazer chegar essa informação é através da realização de congressos, seminários, de trazer especialistas a Portugal, patrocinar eventos em Portugal. Fazer com que seja conhecido aquilo que têm feito. Sempre que há uma má notícia, esta propaga-se como um incêndio. Portanto, sempre que aparecem notícias sobre medicamentos adulterados na China, notícias sobre produtos contrabandeados, é essa a ideia que fica.

– Falta também a comunicação científica da medicina tradicional chinesa ser mais internacional?

F.C. – Esse é o problema. Falta não só ser mais internacional, mas também respeitar os padrões metodológicos internacionais. Há produção científica na China, mas essa produção científica não está traduzida para inglês – ou pouco está –, e para português muito menos. Muitas vezes o que acontece é as traduções não terem qualidade suficiente para poderem ser credíveis. Alguma da investigação não é bem recebida na Europa e nos países de língua portuguesa muitas vezes pura e simplesmente por uma questão de tradução. Quando a tradução está mal feita já ninguém quer saber do conteúdo. A credibilidade morre logo ali. Voltando à questão do desenvolvimento da indústria, o que também é importante demonstrar é, não só como o produto chega à fábrica e é embalado, mas antes também como o cultivo é feito, como a planta é preparada. Não vale de nada ter um processo muito organizado e linear no embalamento se o produto que está a ser embalado não tem qualidade. Isso já vi acontecer. Não é para assustar ninguém, mas é para que se perceba que a única forma de trazer produtos para fora da China ou de Macau é adaptando-se às regras que aqui estão. As regras nunca se vão adaptar à forma de trabalhar na China. 

– É um processo que pode demorar muitos anos?

F.C. – Pode demorar muitos anos, mas é um caminho que pode ser frutuoso do ponto de vista económico. Um produto considerado um medicamento em Macau ou na China, e que aqui nunca seria um medicamento, poderia ser por exemplo um suplemento alimentar. A melhor maneira de entrar é selecionar dois ou três produtos que possam entrar pela via do suplemento e sustentar o investimento para um medicamento, que de facto é um investimento elevado. Todos os chás medicinais podem entrar perfeitamente como suplementos alimentares desde que não façam alegações de saúde. Do ponto de vista industrial, é perfeitamente adaptável a determinada bebida energética, para após a refeição ou para tomar antes de ir para a cama. Sem fazer alegações de saúde entra-se no mercado de suplementos alimentares com produtos que são sobejamente conhecidos. O público é que vai selecionar. Se são produtos tão utilizados na China é por alguma razão, porque funcionam.

– Disse que era importante que a indústria percebesse que o mercado europeu não é necessariamente um mercado de barreiras. Mas também é de esperar de alguma maneira que quer a indústria farmacêutica quer a indústria dos suplementos europeia tenham alguma reação a este tipo de entrada?

F.C. – Claro que sim. Mas é uma questão de pensar numa porta que abre para os dois lados. Se uma empresa na China ou Macau – com uma rede de distribuição, saudável do ponto de vista financeiro, e que quer entrar no espaço europeu – fizer acordos e parcerias com distribuidores e produtores europeus, há muito produto europeu que pode entrar na China. É a melhor abordagem.

– Falando com a Associação Industrial de Macau, esta queixa-se de uma grande dificuldade no acesso à informação sobre o parque científico e industrial. Na vossa colaboração sentem que há uma presença de empresas e da indústria de Macau?

F.C. – Desconhecemos. Neste momento, articulamo-nos diretamente com o parque e não com as empresas que o parque eventualmente representará. Só posso dizer coisas boas da relação que temos com o parque. Nunca tivemos qualquer dificuldade. Para tudo o que apresentamos como propostas há sempre consequência. O que sugeria às indústrias de Macau é que fizessem este caminho de se apresentarem ao parque e explicar em que podem contribuir. 

– No vosso caso o que acontece é que entregam um projeto já desenhado?

F.C. – Exatamente. É isso que eu sugeria às associações de Macau. O parque vai apresentar em setembro uma plataforma pública de apoio à indústria da medicina tradicional. As condições estão criadas. Por exemplo, há uma área em que lanço já a ponte e em que Macau pode ter o maior contributo, que é a questão da tradução. Se houver em Macau profissionais de língua chinesa, que saibam falar mandarim e português, e eventualmente também cantonês, a grande necessidade dos países de língua portuguesa é de bons tradutores que saibam o que estão a traduzir.

– Tradutores técnicos.

F.C. – Com competências em medicina chinesa. Isto é algo muito, mas mesmo muito necessário nos países de língua portuguesa, e nomeadamente em Portugal. É muito difícil desenvolver qualquer tipo de projeto se não houver uma boa tradução, e o conhecimento em língua chinesa é algo tão técnico e específico que perder metade disto numa tradução é uma pena. É um projeto em que uma associação de terapeutas, de médicos chineses que dominem as duas línguas era algo muito bem-vindo de certeza. 

Maria Caetano 

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