Miguel Poiares Maduro, ex-ministro do governo de Passos Coelho, acredita que Macau tem “valor acrescentado” como porta para a China. Mas primeiro tem de “diversificar o modelo de desenvolvimento” e ser mais competitivo. “A perceção que me tem sido transmitida é a de que por vezes é mais fácil para empresas e autoridades portuguesas abrirem o mercado de forma direta do que passando por aqui”, revela o professor de Direito Europeu em Florença
Plataforma – Portugal é a porta histórica de Macau para a Europa, mas não se retiram daí grandes consequências. Visto do outro lado, é mais fácil hoje interessar políticos e empresários portugueses por Macau?Miguel Poiares Maduro – Hoje é mais fácil e Macau tem potencial estratégico para ganhar influência enquanto local de encontro e de comunicação entre a União Europeia (UE) e a China. Em boa parte, pela cultura portuguesa que existe em Macau. É fundamental para a Europa aprofundar relações com este espaço que se insere no país hoje em dia estrategicamente mais importante, não só em termos económicos mas também políticos. Macau pode ser pequeno, mas é do ponto de vista estratégico uma oportunidade para a presença de uma cultura europeia que facilita as relações com a China. Não há muitos locais em relação direta com a China onde a cultura europeia esteja presente. Temos Hong Kong e Macau, mas não mais do que isso.
– Quais são as apostas mais prementes para que Macau se afirme como plataforma eficaz? Visível e competitivo para o padrão europeu?
M.P.M. – Há uma boa base de partida, que é a perceção que a China tem da importância de Macau, não tanto em relação à UE, mas sobretudo com o mundo de língua portuguesa. Agora; valorizar a presença e a cultura portuguesa – e em sentido mais amplo, a relação com a Europa – passa por Macau aprofundar a diversificação da sua estratégia de desenvolvimento. Talvez tenha sido um bocadinho vítima do seu próprio sucesso. Porque ele está associado ao jogo, que arrasta depois toda a economia e a sociedade. É difícil de parar porque havendo sucesso, e potencial enorme de crescimento, é natural que se dê pouca atenção a outras variáveis estratégicas para o futuro. Nesse sentido, esta crise relativa na indústria do jogo pode ser uma oportunidade para se aprofundar a relação com a Europa.
– Em que áreas?
M.P.M. – Por exemplo, no contexto em que a China valoriza a qualificação dos seus quadros. Veja-se o número de estudantes chineses na Europa e nos Estados Unidos, bem como de alunos europeus interessados na China. Uma aposta no ensino superior pode valorizar economicamente o seu potencial, tendo Macau o valor acrescentado de ter uma convergência de culturas. Uma estratégia ao nível universitário seria também uma alavanca para outras formas de desenvolvimento. Trazendo massa crítica, geram-se outras áreas de desenvolvimento, não associadas ao jogo.
– A plataforma lusófona terá mercado suficiente para seduzir escritórios de serviços especializados?
M.P.M. – Naturalmente, isso será importante. Mas do ponto de vista das políticas públicas podem-se promover fóruns que, em determinados domínios da administração pública juntem em Macau gestores públicos, académicos e intelectuais europeus e chineses. Até em determinados domínios que possam ter algum tipo de valor acrescentado para Macau. Ao nível da universidade, uma sugestão que me ocorre é a da criação de uma espécie de escola do governo, na qual as práticas de administração pública chinesas pudessem ser comparadas com as europeias; onde funcionários de diferentes países pudessem ter seminários executivos de curto prazo e, no fundo, partilhassem este espaço de aprendizagem. Esse tipo de iniciativas – em si mesmas boas – tem ainda o potencial de criar massa crítica e fazer de Macau um ponto de refência na ligação entre a Europa, a China e a Ásia.
– Treinar em Macau uma rede sino-lusófona de funcionários públicos?
M.P.M. – A Universidade segue em geral uma lógica de formação de quadros. Uma escola de administração pública que juntasse a experiência europeia, a chinesa, a de Macau e a de Hong Kong, podia ser um ponto de partida. Esses funcionários entrariam em contacto através de Macau, valor acrescentado que pode depois ter impacto na dinamização das relações.
– Em Portugal alguém olha para Macau como plataforma para a China?
M.P.M. – Nos últimos anos, Portugal incrementou muito as relações com a China. Agora, saber se Macau pode ser um ativo nessas relações, ou se pelo contrário elas devem ser geridas diretamente com a China, é uma questão ainda em aberto. Diria que isso depende muito do posicionamento estratégico de Macau. A perceção que me tem sido transmitida é a de que por vezes é mais fácil para empresas e autoridades portuguesas abrirem o mercado de forma direta do que passando por aqui. Macau tem de conseguir gerar essa capacidade de ser a porta de entrada. Se isso acontecesse, seguramente seria mais fácil para as empresas portuguesas.
– Quão importante pode ser essa porta de entrada?
M.P.M. – É fundamental. Quanto mais diversificados forem os nossos mercados de exportação mais aumenta o potencial das exportações. Durante o período em que estive no governo o crescimento das exportações foi um dos resultados mais notáveis ao nível económico. Mas o que é importante, mesmo em contexto de crise, é que Portugal não melhorou a sua balança comercial como ganhou quotas de mercado em países para onde tradicionalmente exportava pouco. Um dos países com os quais mais se reforçaram os fluxos económicos foi precisamente a China, quer ao nível do investimento chinês em Portugal quer nas exportações para a China.
– Um mercado muito apetecido…
M.P.M. – Portugal tem uma escala pequena, o que por vezes dificulta a penetração em grandes mercados. Mas isso também significa que uma pequena parcela do mercado chinês pode ser muito significativa para qualquer empresa portuguesa. É seguramente um mercado no qual temos de apostar, sabendo que estamos a concorrer com muitos outros países a nível global. Por um lado, as empresas portuguesas têm demonstrado capacidade de conquistar novos mercados; por outro, têm hoje uma capacidade para tirarem partido de uma plataforma em Macau que não tinham antes. É preciso colocar o pé efetivamente nessa capacidade estratégica de Macau auxiliar a entrada dos portugueses no mercado chinês – e vice-versa.
Os valores também circulam
– É o poder chinês que hoje condiciona o discurso europeu sobre direitos humanos e políticos?
M.P.M. – Algo cinicamente, podemos dizer que quando a China era pouco relevante era mais fácil a Europa ter um discurso de valores e de princípios. Quanto mais relevante se torna a China maior é a sua capacidade negocial. É a realidade da política internacional.
– Com que consequências? A China imporá um dia os seus próprios valores?
M.P.M. – É inevitável. A integração económica também se traduz em aproximação política e em relações. Com os bens e serviços circulam também os valores das sociedades que os produzem. De forma progressiva, isso irá aproximar os valores. Por outro lado, a capacidade da Europa reivindicar em termos fortes e assertivos certas mudanças diminui com o reforço da capacidade negocial chinesa.
Isto não quer dizer que a melhor forma de se promoverem mudanças políticas seja através de uma retórica extremada. Às vezes evolui-se com mais profundidade através da integração económica e da cooperação. Temos o exemplo da política norte-americana em Cuba, que durante décadas não provocou qualquer tipo de mudança. Mas a nova abordagem, com aproximação e abertura negocial, tem correspondido alguma mudança política em Cuba e parece poder vir a produzir alguns resultados políticos.
– Qual é então a retórica europeia? Ajudar a China com aproximação e integração económica?
M.P.M. – Se me pergunta se o regime político na China é o que eu entendo dever ser, não é. Estamos longe disso. Mas também acho que todos reconhecerão que tem havido mudanças importantes e uma lógica de abertura por parte da China. Nem sempre é linear; há momentos que parecem de regressão, mas numa escala mais longa no tempo tem de facto existido uma abertura na China que penso vai continuar.
– Um português, sentado em conselho de ministros, olha para o projeto lusófono chinês como uma ameaça? Ou como oportunidade?
M.P.M. – Acho que tem de ser visto como uma oportunidade. Naturalmente, sempre que nos sentamos à mesa com vários parceiros e um deles é particularmente poderoso, é natural que haja também algum receio, porque há ali uma capacidade negocial que nenhum outro parceiro tem. É com esse realismo, mas também com a perceção de que tem aqui uma oportunidade que outros não têm, que Portugal deve ter uma política com a China que assuma claramente uma estratégia para uma plataforma com os diferentes países de língua portuguesa.
Não devemos responder de uma forma defensiva; pelo contrário, tendo consciência do peso da China, devemos ver isso como uma oportunidade e procurar jogar na circunstância de Portugal ter um valor muito importante na sua relação com os países de língua portuguesa, mas também um valor muito importante por pertencer à UE. Do ponto de vista estratégico e negocial, isso também nos dá a capacidade de intervir na forma de modelar essa relação entre a China e os países de língua portuguesa.
– Um empresário chinês na área da comunicação digital abriu um escritório em Lisboa, onde diz que a mão de obra é “qualificada” e “barata”…
M.P.M. – Na generalidade, o custo de mão de obra na China é mais baixo que em Portugal. É possivel que em determinadas áreas, havendo falta de quadros e sendo uma área em que as empresas apostam, uma parte dos empresários chineses procura mão de obra noutros países. Temos de ver isso como uma oportunidade para os nossos quadros, sobretudo se isso corresponder a investimento em Portugal. Não temos de ter receio nem qualquer perspetiva de humilhação. Num país como o nosso, com tantas dificuldades de financiamento, empresas descapitalizadas e desemprego estrutural, é fundamental termos investimento estrangeiro.
Quanto mais capacitadas estiverem as instituições que regulam os nossos mercados, menos temos de ter medo do investimento estrangeiro. O importante é que se façam cumprir as nossas regras; por exemplo, ao nível da proteção dos trabalhadores ou dos consumidores. Quanto mais forte e saudável for o enquadramento regulatório, mais podemos acolher investimento estrangeiro sem receio de que venha a causar a erosão dos nossos valores. Esse investimento significa mais emprego, e quanto maior for o investimento mais bem pago será o trabalho. Sobretudo em áreas de ponta, com valor acrescentado.
– Contudo, vender mão de obra barata a empresas chinesas é um modelo de desenvolvimento surreal para a expectativa europeia…
M.P.M. – Em relação ao resto da Europa, continuamos a ter em muitos domínios salários baixos. Não é bom; mas, circunstancialmente, é uma vantagem competitiva. Idealmente, quando mais crescer a produtividade e quanto mais isso acontecer em setores e profissões com maior valor acrescentado, melhores salários teremos. Não devemos esperar é que esses salários melhores surjam a partir do nada.
Paulo Rego