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Má sorte ter nascido em Portugal

Margarita Correia*Margarita Correia

O Ciberdúvidas da Língua Portuguesa fez a Abertura da passada sexta-feira com números, i.e., dando-nos dados sobre a sua atividade, muito relevantes para quem consulta este serviço com frequência, sem conseguir, no entanto, ter noção de todo o trabalho que ali se tem desenvolvido em 26 anos. Oxalá entidades com responsabilidade na educação e na cultura também considerem aqueles dados relevantes e ajam em conformidade!

É-nos dito, em nota, que os números relativos a visualização e utilizadores se reportam só aos últimos oito anos, pois alguns se perderam numa qualquer migração de servidor. Também por isso são impressionantes: cento e cinquenta e seis milhões seiscentos e sessenta e seis mil novecentos e quatro (156 666 904) visualizações e noventa e um milhões duzentos e quatro mil quinhentos e quarenta e oito (91 204 548) utilizadores: tem de ser dito assim, por extenso, para se ter a verdadeira dimensão da coisa. Só no último ano foram os utilizadores mais de um milhão.

Mais de metade dos utilizadores (63%) provêm do Brasil (com cerca de 215 milhões de habitantes) e mais de um quarto (25,7%) de Portugal (com 10 milhões). Este facto presta-se a duas leituras: 1) o Ciberdúvidas é muito usado no Brasil, apesar de naquele país proliferarem “consultórios linguísticos” que propagam uma norma retrógrada e irreal (a das apostilas e exames públicos), pouco realista e informada linguisticamente; 2) que, proporcionalmente, Portugal é o grande usufrutuário deste serviço, que pouco ou nenhum apoio público ou privado tem recebido, vivendo do empenho e entrega dos que nele trabalham.

Respostas dadas em 26 anos foram 95 mil, das quais 35 mil publicadas no “Consultório” e 60 mil dadas de modo privado. Mas não é só disto que vive o Ciberdúvidas: a sua rubrica “1.ª Pessoa” reúne mais de quatro mil documentos, produzidos em momentos e locais diversos, constituindo um magnífico acervo de informação sobre a discussão das nossas sociedades relativamente à língua portuguesa – diversos trabalhos científicos beneficiaram já deste repositório.

O domínio da Internet foi, recentemente, adquirido pelo ISCTE-IUL, que lhe garante apoio técnico, e a Associação de Professores de Português acolheu a extraordinária biblioteca do Ciberdúvidas, a ficar disponível oportunamente. Os conteúdos são da inteira responsabilidade de uma equipa constituída maioritariamente por dois (sim, dois) professores do ensino básico e secundário destacados anualmente pelo Ministério da Educação, mas sem que, incompreensivelmente, o seu trabalho seja considerado exercício de “funções docentes no ensino extra-escolar” (Art.º 68.º, b), ECD). Mais uma vez, no Ciberdúvidas se passarão os meses de verão sem se saber se haverá condições para recomeçar em setembro.

Que eu saiba, o Ciberdúvidas terá sido o primeiro consultório linguístico, gratuito e universal; foi certamente o primeiro em país de língua portuguesa. Continua a ser o mais usado e talvez aquele onde existem profissionais mais habilitados a prestar informação fiável sobre a norma e o uso efetivo da língua. Fez mais pelo português, língua pluricêntica, una e diversa, do que qualquer outra entidade, pública, privada, nacional ou internacional. Tem levado a discussão e o esclarecimento sobre a língua a toda a parte.

Tivesse sido criado noutro país do norte global e teria já sido alvo de reconhecimento e apoio, além de objeto de trabalho científico. Mas nasceu em Portugal… Estará o português condenado a nunca ter norte?

*Professora e investigadora, coordenadora do Portal da Língua Portuguesa

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