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Renascer é mais do que isto

Paulo Rego*

Num domingo qualquer, daqueles que anuncia a vida que aí vem, saio de casa para um encontro entre amigos. Desço as escadas a cantarolar; burilo o endereço em chinês para dizer ao táxi. Abro a porta da rua… e logo desato a sorrir. Um mar de gente, luzes em todo o lado; e o trânsito é barulhento – as buzinas não se calam. Ação… aquela dinâmica antes cansativa; que tanta falta fez quando frisou. Já me tinha esquecido: acabou a crise – e a paz. Táxis… esses, nem vê-los. Respiro fundo. Há um certo conforto neste regresso ao normal. Na verdade, toda a cidade respira fundo. Grave era a paralisia que tudo ia sufocando. Seja bem-vindo o regresso da confusão. Afinal, é o que há! Esse, aliás, é o verdadeiro problema: não se vê onde possa haver outra coisa.

Logo, tem de ser isto. E até tem piada. Mas viver de multidões – quando as há – não chega nem satisfaz. Macau é mais do que isso; tem de ser muito mais do que isso. A questão que se põe é a do ponto de arranque. Três anos depois do cerco pandémico, será que de um dia para o outro está tudo bem? Na cabeça das pessoas, nas empresas, no bolso e no espírito? Na verdade, ninguém sabe; mas de facto não está – e nota-se.

Muita coisa fica mais clara durante as crises; outras simplesmente extinguem-se; e muitos caminhos novos se abrem. A partir deste momento, o tempo vai acelerar. Macau arranca para mais uma transição, agora focada no turismo de massas e casinos reconvertidos em produtores MICE. Isso vai haver, assim está contratado. Não se pode é verdadeiramente chamar a isto diversificação económica. Nada disto é estrutural; trata-se apenas de ligar a máquina e sair do buraco. E o ciclo só tem dez anos.

Ergo os olhos ao céu. Há luz. Nem sequer é tímida, dada a hora tardia. É, sobretudo, quente. Sente-se, mais do que se vê. Avanço, empertigado; multidão adentro, auscultadores armados, no balanço da dança interior. Ergo os olhos de repente; vejo de frente um olhar enorme; sorriso intrometido, braços abertos… e não é que abraça mesmo! Rápido, mas terno. Volta a sorrir e segue o seu próprio caminho. Sem ter verdadeiramente parado, deixa assim a prova de que me viu. Vinda do nada, aquece-me a alma; porque há nisto algo que não se via. Será de mim, penso. Mas eu estou aqui… logo, também é desta circunstância. Há uma coisa qualquer no ar. Tem mesmo a ver com o sítio, com a forma como encolheu, com a ânsia de voltar a erguer-se. Talvez mesmo renascer.

Há uma profunda contradição entre o espírito do que aí vem e o peso político presente. A burocracia não faz sentido, o esoterismo palaciano também não; a segurança não é – nem nunca foi – problema nem prioridade… Se quer ser plataforma entre mundos, Macau tem de mudar a sua relação com o “outro”. Venha ele da China, Portugal ou da Austrália; venha ele jogar e passear, investir, fazer negócio ou constituir família.

A cidade, o seu ambiente sociocultural, o seu regime político – e sistema económico – têm de ser muito mais atraentes e funcionais. É daquelas coisas que toda a gente sabe, mas ninguém quer dizer – muito menos fazer alguma coisa para mexer.

O setor privado tem de ser confrontado com o seu próprio renascimento. O Estado pode ter visão estratégica, abrir caminhos e criar. Mas não pode inventar tudo.

*Diretor-geral do Plataforma

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