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O Dia de Portugal como matéria de reflexão

João MeloJoão Melo*

A 10 de Junho celebra-se o Dia de Portugal e em vez das tradicionais lengalengas estéreis gostaria de aproveitar para realçar a importância que uma reflexão sobre o nosso país pode ter para o auto-conhecimento, para nos melhorarmos e melhorarmos o mundo.

Em traços gerais o território onde Portugal se haveria de estabelecer foi habitado por tribos indeterminadas, e após o século VIII AC instalaram-se colónias fenícias, um povo originário do actual Líbano cujo fito era estabelecer entrepostos comerciais no litoral. Até ao século III AC, altura em que os romanos chegaram, referenciaram-se tribos de grande valentia, nomeadamente os celtas (os romanos consideravam os Lusitanos uma tribo celta) que resistiriam até ao ano 19 AC quando a península foi totalmente submetida à nova ordem; o império romano impôs estruturas sociais, normas de vida, um código legal ainda hoje vigente, mas também assimilava características das culturas que dominava. A partir do século V as invasões bárbaras cortaram a ligação a Roma, porém os invasores acabaram integrados na romanização existente. Em meados do século VIII foi a vez dos muçulmanos do Califado Omíada encetarem o controlo da maior parte da península. Talvez seja demasiado incómodo para o admitirmos mas durante 5 séculos o território de Portugal foi a pátria de uma maioria de muçulmanos que tolerava as minorias cristãs e judaicas; não se enganem: este conjunto de calhaus foi a pátria deles. Sobre as fundações acima descritas até à criação do país que hoje conhecemos passaram-se uns 20 séculos.

Já com a identidade nacional formada, no período dos descobrimentos o império português montou-se com um número surpreendentemente baixo de pessoas, com espírito bravo, mercantil e missionário. O financiamento da aventura veio de dinheiro templário, uma ordem excomungada pela Igreja Católica, dinheiro judaico, ciência árabe e judaica. Até à conversão obrigatória ao cristianismo todas as confissões conviviam nas suas diferenças, geralmente de forma pacífica. D.Manuel I sonhou unir os reinos ibéricos sob a sua alçada e para isso pretendeu casar com a filha dos reis de Leão e Castela; estes puseram como condição a expulsão dos judeus de Portugal. Considero esta a pior decisão da nossa história, talvez pior que Alcácer Quibir mas compreendo que é um olhar actual para o passado, na perspectiva de D.Manuel os ganhos seriam potencialmente maiores que as perdas. Encontrava-se no pináculo do poder mundial, ambição e soberba não estariam ausentes do seu estado d’alma. Expulsaram-se igualmente árabes e até hoje nunca houve para eles uma retratação oficial; entretanto os judeus que recusaram a conversão forçada foram para Nápoles e para a Turquia, a sede do Império Otomano, os nossos maiores inimigos no oriente, e posteriormente para a Holanda, país que se dedicou nos séculos seguintes a sabotar, a conquistar os nossos territórios e rotas comerciais, e agora é capaz de me processar por não lhe chamar Neerlândia ou lá o que é.

Devido à emergência de outras potências marítimas europeias, e certamente condicionados pela união ibérica sob os Filipes, fomos empurrados para a ocupação de territórios, um modelo que nos era estranho, além de logisticamente difícil. Enquanto os espanhóis se entretinham no ocidente a dizimar facilmente civilizações, roubando e explorando os seus recursos, nós apontámos aos ingleses, franceses e holandeses o caminho da globalização, da exploração comercial a nível global, e a forma de atingir o desiderato deixou de ser um segredo: dominando os mares. A batalha de Diu onde derrotámos árabes e mamelucos “apenas” mudou para sempre o paradigma… do mundo, e claro que poucos sabem disto, nem os portugueses o sabem. É considerada por vários especialistas mundiais em História e geo-estratégia uma das cinco batalhas mais importantes da humanidade. Não discuto se se deveu fundamentalmente à escassez de gente e meios, não obstante as posições mantidas nas colónias sobreviveram à custa da miscigenação, de alianças que se faziam e desfaziam ao sabor dos interesses do momento. Nunca fomos para lado nenhum para dizimar civilizações, aliás no oriente eram todas mais avançadas sob múltiplos aspectos e constituídas por milhões de almas. Somente 55 dos 148 homens que integravam a primeira armada de Vasco da Gama regressaram a Portugal, os restantes pereceram, uma nau teve de ser queimada em consequência do reduzido número de tripulantes para a manobrar. Já agora digam-me uma batalha, só uma, onde nos atirámos à luta com números superiores ao inimigo? Não há, logo não nos venham cá falar de minorias, afinal sempre fomos uma minoria, estamos habituados a sê-lo, e por sinal uma bem valente, o que também é mau: valentia hoje só convém que haja nas personagens de ficção, nós é para nos mantermos mansinhos. Foram séculos de aventuras, de trocas interculturais, uma versão ao século XV e XVI do universo Star Wars: umas vezes coexistíamos pacificamente com outras culturas e, nota importante, em plano de igualdade, outras guerreávamos ferozmente contra quem afrontava os nossos interesses. O português, talvez um mix de fenício, celta, romano, bárbaro, judeu e árabe, integra-se na cultura local, absorve e molda pela calada o novo meio; nunca esquece a sua origem mas aceita o melhor do que o destino oferece. Vai ficando, mistura-se, metamorfoseia-se, a língua adquire sotaques, cria dialectos, inventa raças, recria a gastronomia, dilui-se no mar local, e também por isto se explica porque o império durou tanto tempo sem dar muito nas vistas. Os portugueses perderam-se de amores pelo oriente, por África, pelo Brasil, essas são as suas terras.

Os ingleses, holandeses, franceses, enfim, as potências europeias que foram as últimas vencedoras, que tiveram fortíssima influência no que são os Estados Unidos, Canadá, África do Sul, Austrália e outros, que por isso controlam a narrativa histórica actual, são os principais porta-estandartes do multiculturalismo. Segundo a wikipedia multiculturalismo é um termo que descreve a existência de muitas culturas numa região, cidade ou país, com no mínimo uma predominante. Esta ideia foi absorvida pela Europa Ocidental e é uma narrativa prevalente do núcleo duro da União Europeia, sendo menos entusiástica no leste e no sul, um pouco indiferente em Portugal que possui o seu próprio conceito enraizado há séculos.

Todos os europeus têm pecados a expiar pelas barbáries passadas que vão da usurpação de terras, perseguição religiosa, à escravatura e outras ignomínias. Portugal não foge ao juízo mas parece-me que o multiculturalismo é uma psicanálise exclusiva das tais potências que estão a escrever a História, para os portugueses é algo postiça, no mínimo, uma hipocrisia. É que o poder desses países baseou-se no menosprezo pelas populações locais, num sentimento de superioridade que não aceitava misturar-se com elas. Resultou no racismo dos Estados Unidos, o sistema de Apartheid na África do Sul, e na compartimentação étnica do Canadá, por exemplo. O multiculturalismo é lindo, existe em Londres, Amsterdão, Paris, Berlim, Nova York mas saiam dessas cidades, vão para a província dos respectivos países e depois falamos…

É no pequeno pormenor da definição de multiculturalismo que reside a principal diferença: se exceptuarmos a religião, aspecto pelo qual raramente fomos tolerantes, a cultura portuguesa nunca pretendeu ser a predominante, ao contrário dessas potências. O nosso imperialismo baseou-se num conceito subtilmente diferente, a interculturalidade. A interculturalidade tem lugar quando duas ou mais culturas entram em interacção de uma forma horizontal e sinérgica. Para tal, nenhum dos grupos se deve encontrar acima de qualquer outro, favorecendo assim a integração e a convivência das pessoas. Relações interculturais implicam ter respeito pela diversidade, embora, obviamente, o aparecimento de conflitos seja inevitável e imprevisível. É por isto que por um lado o multiculturalismo me parece uma bandeira alheia, e por outro torna mais difícil fazermos um auto-exame dos erros e injustiças que de facto cometemos; intuímos que a nossa acção foi singular, a intelligentsia mundial diz-nos que não, e mais, diz-nos que fomos os piores de todos. Na verdade somos é o bode expiatório… Neste entremeio a ignorância sobre a nossa História aliada ao seguidismo da agenda imposta pelas potências do momento, bem como a ausência de uma honesta e profunda reflexão nacional (que não interessa a nenhum governo seja qual for a cor) criaram uma confusão tal que torna difícil fazermos as pazes com os nossos fantasmas ou dragões. Urge entabular essa reflexão em vez de andarmos a seguir tretas alheias quer sejam de teor multiculturalista ou nacionalista, somos muito mais e melhor que isso. O problema é que tudo se tornou matéria sensível, polémica, e a reflexão irá ofender alguém, tendendo-se a cair num dos extremos. Resultado: tornámo-nos irremediavelmente ignorantes. Estamos perdidos no presente e à mercê do futuro que desenharem para nós porque desconhecendo o passado ficamos incapazes de o tomar pelas próprias mãos. Cortarem-nos os laços com a nossa História é a melhor forma de nos controlarem; mais depressa conhecemos a história de obras de ficção criadas para entreter e doutrinar a população mundial do que a nossa própria, que até “por azar” é incomparavelmente mais interessante, rica, heróica, dramática e… real, logo bastante perigosa porque tanto contribuiu para os delirantes mitos do antigo regime, como agora poderia promover o pensamento crítico. Vamos extrapolar a interrupção do fio histórico desta para outras agendas? Uma coisa é entender e até sentir empatia por causas (geralmente relacionadas com minorias) que se vão agitando nos dias que correm, outra é obrigarem-me a engajar-me nelas, fazerem sentir-me mal se não as assumir, empurrarem-me automaticamente para o campo oposto como se só houvesse “a favor” ou “contra” e pior que tudo, vir a ser criminalizado por me recusar a vestir certas camisolas ainda que nem tenha nada contra elas. O truque, como falei aqui há tempos acerca da novela “1984” de Orwell, é apartar-nos do contexto histórico, apresentarem-nos a versão resumida, concebida para a assimilarmos: desde o início da narrativa o protagonista de 1984 percebe as limitações da sua memória, vendo-se encurralado entre a historiografia artificial desenvolvida pelo Ministério da Verdade (cá temos os “fact check”, os “barómetros da verdade”) e as informações inconsistentes que derivam das suas lembranças, formando um conjunto disforme de dados onde os limites da realidade são quase indefiníveis. Este processo foi acompanhado por outro em que quaisquer valores do passado foram sendo postos em causa, desmontados, achincalhados. Uma vez chegados a um estado de profunda falta de referências afectivas e sociais, como o que estamos a viver, os sujeitos irão à busca das suas identidades dentro da própria ideologia dominante; e aí pronto, fechou-se a porta da gaiola mental, fomos caçados na ditadura do pensamento único.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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