Início » Além do bem e do mal

Além do bem e do mal

João MeloJoão Melo*

“Eles estavam num estado tal de choque, tão assustados, que podíamos fazer o que quiséssemos com eles” – Hans Friedrich guarda SS nazi de Auschwitz acerca dos judeus.

Vivemos num estado de ansiedade latente desde 2001, de ansiedade permanente após 2020 e no futuro não se vislumbra um abrandamento da pressão. A afirmação do SS de Auschwitz que vi num recente documentário resume o propósito, retirar-nos humanidade e pensamento crítico, reagirmos de modo automático, sermos previsíveis, ou seja, controláveis. “Agora não é altura para conversas mas para agir. Afinal estás de que lado?” são respostas que frequentemente ouço às minhas dúvidas e fazem parte do conteúdo radical com que temos sido programados sem nos darmos conta. Nunca é altura para conversas, só para escolher uma de duas opções fornecidas, a favor ou contra. Aliás já nem conhecemos outras, o dualista gosto/não gosto chegou de mansinho com as redes sociais monopolizando os processos racionais devido à sua simplicidade e modo de funcionamento: baseia-se em emoções que se apoderam da mente, e agora a maior parte das pessoas não pensa, sente. Se os contornos do nazismo, de quem o promoveu e financiou continuam nebulosos, o que temos é a versão resumida de que os bons derrotaram os maus, nunca será altura para conversar acerca de estranhos sincronismos, repetição de padrões de personagens e eventos actuais, quem ou o que estão a servir. O guião é sempre o mesmo, apenas mudam a época e os protagonistas. Às vezes até se dá a coincidência, não só em Hollywood, de uma obra de ficção antecipar acontecimentos, outras vezes os próprios actores da ficção são os mesmos do cenário real. Calhou… Esta aparente falha na matrix passa despercebida porque somos levados a focarmo-nos no momento, a sentir intensamente o dramatismo da novela que montam para nós, e não ter memória deixa-nos à mercê de quem controla a realidade, ou seja, quem escreve o guião da História, os vencedores.

Eu tento não esquecer, em Julho de 2020 escrevi aqui “a pouco e pouco a visão maniqueísta instalou-se e generalizou-se, ameaçando desembocar num conflito global. Se ele chegar, o nosso cérebro continuará a não ser estúpido, mas só conseguiremos responder ao desafio da maneira que aprendemos: abordando o desconhecido munidos de cânones e rótulos familiares, optando pelo seguro seremos razoáveis, e devido ao efeito de gado não iremos contra as crenças dos que nos rodeiam quando formos colocados perante o derradeiro dilema ‘estás comigo ou contra mim?’ Nessa altura espero bem lembrar-me de como isto começou, com uma falácia representada por actores”.

Fechar os ouvidos mesmo ao melhor contra-argumento uma vez tomada a decisão: sinal de um carácter forte. Logo, uma ocasional vontade de estupidez*

Tenho um amigo que sofreu com a guerra na ex-Jugoslávia, do lado dos vencidos, e me diz candidamente “as pessoas andam a ser enganadas, Putin é o bom...” Por falar nele: o líder russo invadiu a Ucrânia e bombardeia populações civis “pelo dever de manter a paz”. Ignóbil, hein? A capa da revista Time de 11 de Setembro de 1995 diz que “submeter os sérvios a um bombardeamento massivo abre as portas para a paz”. O mesmo discurso mas a moralidade varia conforme seja o mau ou o bom a proferi-lo. Ainda não ouvi falar mas suponho que os separatistas estejam felizes, não sei, não temos acesso à versão russa da propaganda.

O quê? Um grande homem? Vejo sempre apenas o actor do seu próprio ideal*

Putin iniciou a invasão alegando ter sido traído pelo ocidente, diz-se vítima da sua credulidade. Para a professora de direito internacional da Universidade de São Paulo Maristela Basso, o presidente da Ucrânia foi abandonado pelas forças do ocidente após promessas de que teria apoio numa eventual invasão russa. “É uma situação bem difícil para Zelensky porque ele foi, usando uma expressão grosseira, absolutamente traído pela NATO e pelos seus ‘amigos’ no ocidente.” Se foi traído não sei, sei que acusa a NATO de “dar luz verde a novos ataques”. Quem sabe se ambos os lados foram levados a crer num cenário diferente? Entretanto despertando velhos fantasmas vemos milhares de pessoas obrigadas a enfiar toda a sua história de vida dentro de uma mala e partir, vemos fotos e vídeos (cuja origem e tratamento desconheço) de inocentes atingidos pela guerra que Putin eufemisticamente apelida de “operação especial”. Guerra é guerra pá, não admira que mísseis atinjam alvos civis; o míssil não se sente culpado, rebenta onde o mandarem rebentar. Hospitais, colunas de civis, creches e maternidades já foram atingidas, mais horrores se seguirão.

A loucura é algo de raro nos indivíduos – mas em grupos, partidos, povos, eras, é a regra*

Voltando aos fantasmas do passado: ”estávamos convencidos que nós, os alemães, tínhamos sido atraiçoados pelo mundo inteiro. Naquela altura as crianças eram nossas inimigas. O inimigo era o sangue que circulava dentro delas. As crianças cresceriam e podiam tornar-se judeus perigosos. Por isso é que as crianças não eram excluídas.” – Oskar Gröningen soldado SS.
“- O que sentia e pensava enquanto disparava?
– Nada. Só pensava ‘faz pontaria’ para que eles morressem só com um tiro. Quem não estava connosco estava contra nós. Se apanhássemos traidores, combatentes da resistência, civis, podíamos matá-los e pronto.” – Hans Friedrich soldado SS.
“- Eu era uma simples guarda, estava lá e fazia o que me pediam.
– Sente-se culpada?
– Não, eu pessoalmente, não. Sabia que não podia ajudá-los senão prendiam-me a mim.” – Hertha Bothe guarda SS que acredita ter sido ela a vítima. A Hertha e os outros SS são como nós quando devidamente doutrinados: mísseis que rebentam onde nos mandarem rebentar; pessoalmente ninguém se sente culpado, assim estamos condenados a repetir a matéria porque ainda não aprendemos.

Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para ele próprio não se tornar um monstro. E quando se olha longamente para um abismo o abismo olha também para nós*

Não será estranho um demónio mil vezes mais inteligente que Saddam Hussein (o último derrotado pelas forças do bem), que nos tem espiado há longo tempo, portanto sabe como funcionamos, alegar uma razão tão absurda para a nossa inteligência como desnazificar a Ucrânia, e por um mero acaso igualmente absurdo o presidente ucraniano até calha ser judeu? Enfim, se Putin foi levado à guerra como afirma, se não foi, agora não há muito a fazer, invadiu um estado soberano NA EUROPA (invasões noutros locais não nos tocam tanto) e está a provocar sofrimento a uma população que não pediu para ser “salva”, muito menos por ele; logo se me perguntarem de que lado estou não tenho opção, a resposta é a que se espera. Quando daqui a poucos anos vier o exame final já não haverá nada a fazer, a resposta de cada um será clara e previsível, devidamente testados e divididos por estes ensaios prévios. A questão actual é a soberania mas ó meus amigos, francamente, trata-se de uma mera formalidade, como a crise da banca e a pandemia vieram pôr a nu: serei realmente dono das minhas coisas ou até do meu corpo? Deixem-me rir. Na sexta-feira António Costa foi a Bruxelas pedir para a Comissão baixar o IVA nos combustíveis; ele que governa Portugal não o pode fazer sem consentimento superior. E por aí fora, tudo o que por acção humana acontece de bem e mal, só acontece com autorização superior, quer sejam ordens directas de entidades acima ou consequência da nossa programação. E como não fazemos nada e ninguém tem culpa todos pagaremos bem pago… cá em baixo, calma.

“O nosso vizinho não é o nosso vizinho mas o vizinho do nosso vizinho” – assim pensam todos os povos*

*As frases em itálico com asterisco são de Friedrich Nietzsche

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

Contact Us

Generalist media, focusing on the relationship between Portuguese-speaking countries and China.

Plataforma Studio

Newsletter

Subscribe Plataforma Newsletter to keep up with everything!