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Utilidades

João MeloJoão Melo*

Quando era miúdo e necessitava da casa de banho por, digamos, um certo período, lia lá qualquer coisa desde bulas de remédios, rótulos de produtos, comics ou mesmo literatura.

Fazia-o para preencher o tempo, também pelo gosto de saber, porém confesso que cheguei a alimentar a secreta esperança de ganhar milhares de contos de réis num concurso cuja pergunta final seria “qual é o primeiro e o último título das páginas amarelas?” Sentado na sanita, de calças caídas nos pés e um sorriso de vitória antecipada, responderia “abat-jours e zincogravura” enquanto escutava na minha cabeça o bruá de espanto da assistência e as vozes das tias do Vasquinho n’A Canção de Lisboa exclamando “meu rico filho, até sabe a zincogravura”. Se o tema versasse a lista classificada tinha preparada outra resposta, apenas precisava que fosse essa a pergunta: “o apelido mais frequente na lista de Lisboa? Silva, 28 páginas”.

Vem isto a propósito da informação útil e inútil que vamos guardando ao longo da vida, para salientar um dos seus mais curiosos contribuintes, o Borda d’Água. A edição de 2022 exibe carimbada a vermelho a marca “93 anos” e logo no frontispício avisa que este é “o verdadeiro almanaque” Borda d’Água, o da Editorial Minerva, não confundir com outros que pessoalmente nunca vi. Apresenta uma ferradura sobre um boneco vestido de fraque e cartola olhando para um calendário semelhante aos impressos no verso dos cartões de visita de firmas comerciais, reivindicando-se um “reportório útil a toda a gente”, “contendo todos os dados astronómicos e religiosos e muitas indicações úteis de interesse geral”. O aspecto da impressão levanta a suspeita de os tipos móveis da tipografia estarem imóveis há 93 anos, as únicas coisas que parecem mudar são o número do ano e o tal calendário. Mais indicam que a Editorial Minerva se situa na rua Luz Soriano, 31-33 em Lisboa, não sabia, no entanto, porque o folheava de fio a pavio, sei que foi a rua da sede do Diário Popular, toma!

Desconheço se “o reportório é útil a toda a gente”, para mim, nascido, criado e vivido no meio do betão é deliciosamente inútil, mas quem sabe? Pode ser que ganhe umas dezenas de milhares de euros num concurso por me lembrar que em Agosto “na horta, em local definitivo, semear agrião, espinafre, feijão, rabanete, repolho de inverno e salsa”. Ou então, da maneira que o mundo anda, um dia terei de usar a banheira para plantar couves e acomodar no bidé um ninho para uma galinha. Uma vez que as ideias do arquitecto Ribeiro Telles têm superado o exame do tempo ainda hei-de ver plantações hortícolas em canteiros urbanos e campos de golf. Para já vejamos o que diz o almanaque sobre Janeiro: “em Janeiro, um porco ao sol, outro no fumeiro”. A sabedoria popular ultrapassa os limites da relatividade restrita do espaço-tempo: como raio previu que não tem chovido, por isso costumo aproveitar para apanhar sol num jardim e no banco ao lado está sempre alguém a fumar? Hoje dia 17 de Janeiro de 2022 é uma segunda-feira, dia do abade S. Antão. Pronto, cá está informação (in?)útil: se conhecer alguém com esse nome é possível que tenha nascido a 17 de Janeiro e deduzo que para os pais o nomearem assim ou eram muito religiosos ou o Sr. Antão não foi lá muito desejado, será fruto de um descuido. Se ao menos a mãe do Sr. Antão tivesse consultado as fases da Lua no Borda d’Água eu escusava de ocupar o cérebro com um relatório não solicitado sobre o filho. Continuando. Neste dia em 1995 morreu “Miguel Torga (escritor português)”. Na época corrente é natural que um néscio não saiba quem foi Miguel Torga, arriscando-se a perder milhares de euros num concurso, e agora começo a entender a utilidade do “reportório”. Por fim assinala-se que haverá Lua Cheia às 23h 48m, terminando as referências ao dia num enigmático “frio”. Lua Cheia a 12 minutos para a meia-noite? Ui, será que “frio” é abreviatura de “calafrio”, aquilo que sentirei se der de caras com um lobisomem?

Esmiuça-se cada dia do ano mais o seu santo e respectiva efeméride até que ao alcançar o dia 31 de Dezembro surge a lapalissada “dias vencidos: 365”, rematada a “feliz e próspero ano novo ao possuidor deste almanaque”. Acho que cai bem o gesto, a atençãozinha ao cliente; agradeço os votos e especialmente o singelo trato à antiga portuguesa. Após este afago no pelo passamos ao capítulo das marés, contudo nem quando vou gozar férias à praia lhe descortino utilidade, ademais no verão já não sei onde pára o Borda d’Água. Segue-se a entrada da Lua nos signos do zodíaco, os eclipses, e uma tabela de Festas e Feiras. Tomai conhecimento de que todos os dias 17 se realizam feiras em Alfândega da Fé e Trancoso (se não forem suspensas devido à pandemia); hoje em particular há em Freixedas uma “festa ou feira”. Infelizmente não especifica qual das duas é e dava-me jeito para saber se antes de fazer 335 Km vou para uma rave ou comprar nabos. Certo, admito estar a ser um niquinha exigente, porque para isso há a internet (da qual me servi para ver onde ficava Freixedas), senão o almanaque não teria 12 folhas nem custaria a módica quantia de “2,50€ – IVA incluído”. Por 500 melréis mais o bónus de incluir o imposto queria o quê, cupões de desconto do Lidl?

A última página ocupa-se por inteiro de um “juízo do ano”, “texto redigido por Carla Peres” que aborda as influências astrológicas, as alterações climáticas, a fome, as guerras e “tudo o resto”, os desafios do desconhecido com o covid à cabeça, o “aumento exponencial das doenças mentais” e do egoísmo. Findada a descrição do apocalipse deseja “ao estimado leitor, um excelente ano repleto de luz, paz, amor, saúde e prosperidade”. Não sei como, fogo, mas obrigado à mesma. Faço meu o desejo da Carla, intentando idêntico devir ao estimado leitor desta coluna, e aproveito para dar os parabéns ao almanaque: quem há décadas diria que sobreviveria às listas telefónicas? Se em 2022 eu sobreviver à fome, guerras, covid, doenças mentais e tudo o resto, espero ter a companhia do Borda d’Água 2023 quando for à casa de banho… sem pintos no armário, alfaces no lavatório ou um porco na sanita.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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