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Cá em baixo não há lugar

Carlos Morais José*

Sentado no café com a pose de quem é qualquer coisa além de si, meto o dedo no nariz e escarafuncho até encontrar um pedaço de cérebro mole que possa retirar sem afectar o que, eventualmente, me console.

A mente é uma fronteira, daquelas feitas a risco, que não nos deixa deste lado e nos transporta ao paraíso do siso, à vanguarda dos literatos, ao esgoto e aos ratos. Enfim, na mente a todo o lado se vai.

E não é serena a viagem. Naufrágios, resingadas, furos fundos nos pneus. Dos confins do universo ao meu bairro, vou num salto, resumo num guardanapo e ainda questiono deus. Sinto-me grande de tão pequeno dever. Esse de pensar. De lutar. De, no limite, quando farto, bolçar escrita, talvez por ser o portal que desconheço.

Preferir à morte a vida. Para onde ir, penso irrequieto, como o fazer, como sobreviver à ausência de futuro? Tudo me apoquenta e pouco me interessa. Sinto pressa e quero sossego, sou valente e tenho medo.

T’esconjuro boletim meteorológico, parente do disparate, da insensatez domingueira. Cozinho, pois, e à maneira, ensinada por minhas tias a quem telefonava incessante, quando a dúvida do refogado levantava o lume e a panela tremia. Uma cebola alourava, um tomate espraiava os odores ácidos de uma casa assim enunciada como tristeza. Um peixe, que era pescado, levanta submisso as lascas. Espero junto ao fogão.

Vejo-me banto, judeu, taoista, agareno e cristão. E sei do sentido bélico destas palavras. E foi por terra lavrada que deixei o meu país. Nunca extirpei a raiz que é dura de extirpar

Como Átila aguardo a minha oportunidade. Antevejo, cínico, o desmoronar sucessivo de impérios. Franzo o sobrolho e bato palmas. É que vem aí o mesmo, ainda que diferente. “Same same but different”, rosna algures o tailandês e nesta frase se conjuga uma vidência sem par. Tudo é igual, até no orgulho das mínimas discrepâncias. Não sou o mar, não sou o céu ou a terra dantes firme. Sou a treta de um cometa que uma noite há-de passar, deslizar, compreender, amar, buscar em absurda demanda, até um dia morrer.

Até um dia se apagar do céu dos outros, o céu dos coxos lúmpen, obedientes, a rosnar imprecações entredentes, formatadas pela hora. Mas sossegados: nada há para mudar. O mundo troca de roupa sazonalmente e mente como fazem os crentes quando nos pregam exactidão. Nem no caixão alguma vez serás só.

Vai aos santos e ensaia o solidó, que é o limite possível, a farsa de outra vida, mas às arrecuas. Fanático de sardinhas e manjericos amarelados como dentes. É do tabaco, insinuam. É do retrato, sem emendas, tirado na minha rua, na intimidade do estar nu como o peru, assoberbado de vinho, imerso nos malefícios de um cigarro incompleto.

Sopra lá fora o tufão, mas não passa de mais um vento afinal. Mais um vento e outro vento. É certo, deixa mazelas. Nódoas verdes e negras em pele fria. Sim, sinto frio, ainda que faça questão de arder, até pavio existir. A chama da vela não aquece. A cera somente entontece o desgraçado que ora. Hora essa que não passa, nem fenece.

As malhas que o império tece estão aí a conjurar. Sabem de sobra a razão, o mais falso dos argumentos. Vejo-me banto, judeu, taoista, agareno e cristão. E sei do sentido bélico destas palavras. E foi por terra lavrada que deixei o meu país. Nunca extirpei a raiz que é dura de extirpar. Vai tu hoje ao doce campo, atrela o boi ao arado e sulca a terra como se fosse o céu que lavras. Cá em baixo não há lugar.

*Jornalista e escritor

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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