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Vamos cortar a cabeça ao Infante D. Henrique?

Pedro Tadeu*

Em Lagos, Algarve, Portugal, há uma estátua ao Infante D. Henrique, o príncipe que no início do século XV iniciou a expansão marítima portuguesa.

Para uma criança educada, aqui, no ensino oficial dos anos 70 do século passado, o Infante D. Henrique é um herói.

Ensinaram-me a inteligência e a visão do homem que colocou o país a procurar riquezas no mar desconhecido.

Ensinaram-me o brilhantismo e a capacidade de organização do nobre que abriu uma escola náutica para formar marinheiros competentes, estudar revolucionários métodos de navegação, desenhar e construir caravelas capazes de enfrentar a fúria do mar alto.

Ensinaram-me os versos de Luiz Vaz de Camões que celebram D. Henrique como membro da “ínclita geração, altos Infantes”.

Ensinaram-me, ainda, o hino nacional que celebra os “Descobrimentos” como a proeza que em pouco mais de um século “deu novos mundos ao Mundo”, como se o mundo anterior fosse apenas este canto onde vivemos.

Em Lagos há, também, um museu sobre a escravatura, integrado num projeto da UNESCO designado “Rota dos Escravos”.

Este é, também, o local europeu onde se fez precocemente comércio de escravos negros trazidos de África, via oceano Atlântico, numa ação apadrinhada pelo Infante.

Manuel Pinheiro Chagas, no século XIX, tentou defender a honra portuguesa contra a acusação inglesa de que D. Henrique iniciara o tráfico negreiro de África, mas não foi capaz de negar a realidade cruel: sim, a escravatura vinha de longe, muito antes do Infante, e estava “radicada no ânimo dos povos”, mas os portugueses da época promoveram o tráfico como “piratas sem fé nem lei, violando os direitos mais sagrados da Humanidade a pretexto de servirem o Mártir do Calvário”.

Para um angolano será um corte com um longo ciclo de silêncio e a reconstrução de um passado que lhe atribui uma nova identidade

Não me ensinaram terem ido para as Américas 12 milhões de escravos negros, vendidos pelas elites africanas a ingleses, portugueses, franceses, norte-americanos, espanhóis, holandeses e dinamarqueses – sim, os homens do meu país estiveram no topo dessa barbárie.

Ensinaram-me que o Marquês de Pombal tornou Portugal pioneiro na proibição do comércio de escravos para a Europa mas, ao mesmo tempo, esqueceram-se de me dizer que o mesmo Marquês incentivou e até lucrou pessoalmente com o comércio de escravos, que continuou até muito tarde para o Brasil e para outras colónias.

Não me ensinaram a verdade sobre algumas personagens beneméritas: por exemplo, o Conde Ferreira, que ainda hoje dá nome a um hospital no Porto, nasceu miserável e fez fortuna, na segunda metade do século XIX, a traficar 10 mil escravos de Angola para o Brasil.

Da exaltação antirracista nascida com o homicídio de George Floyd, renasceu a raiva anticolonialista. Uma das estátuas de Cristóvão Colombo, o suposto “descobridor” da América, foi decapitada, outra derrubada. Muitas outras figuras em pedra ou bronze de “heróis” das potências coloniais estão a ser deitadas abaixo.

É, de certeza, lúcido e justo indignarmo-nos com uma sociedade organizada em torno de um comércio desse tipo, não só as dos séculos XV a XIX, como todas as anteriores.

Acredito, porém, na incorreção de julgarmos moralmente as ações dos indivíduos que viveram num enquadramento social e ético tão diferente do nosso que, simplesmente, somos incapazes de os perceber, quanto mais de ajuizá-los corretamente – provavelmente muitos esclavagistas ganharam, à luz da moral da época, um lugar no Céu dos cristãos.

Eu, português e branco, olho para a estátua do Infante D. Henrique em Lagos e sinto orgulho. Vou até ao Edifício da Alfândega, onde está o museu sobre a escravatura, e envergonho-me. Não suporto a ideia de uma sociedade com comércio de carne humana, mas isso não chega para desejar decapitar a figura de D. Henrique.

Tento meter-me na pele de outro. Imagino-me, por instantes, angolano e negro. Olho para a mesma imagem do Infante e penso no passado do meu povo, exportado em massa, como gado, para outros continentes. Visito a “Rota do Escravo” e sinto uma raiva incontrolável que me leva à revolta: “como é possível fazerem uma estátua aquele homem?!”.

Não sei que lições de História o angolano negro que imaginei poder ser teria aprendido na escola – provavelmente esconderiam dele a barbaridade das elites africanas neste tráfico humano, como esconderam da minha realidade branca e ocidental a crueldade dos meus compatriotas que Pinheiro Chagas, a custo, admitiu.

É correto cortar cabeças a estas estátuas?

Para mim, simbolicamente, será cortarem-me um bocado do meu passado, um pedaço da minha identidade com todo o bom e todo o mal que ela herdou.

Para um angolano será um corte com um longo ciclo de silêncio e a reconstrução de um passado que lhe atribui uma nova identidade com coisas novas boas e coisas novas más, de que passará a ser herdeiro.

Porém, vou continuar a ter orgulho em ser português, mesmo se cortarem a cabeça ao Infante D. Henrique: qual é, afinal, o povo que não homenageia gente discutível do seu passado coletivo? Qual é, afinal, à luz da moral dos dias de hoje, o povo com uma História totalmente inocente de maldade?…

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