Já não há heróis (“No more heroes”), cantavam os The Stranglers há quatro décadas. Felizmente que, glosando Mark Twain, “as notícias da morte dos heróis eram manifestamente exageradas”. Eles existem e não precisam de ser semideuses como se acreditava na Grécia Antiga. Estão ao nosso lado nestes dias de crise de saúde pública. São os pacientes infetados, os médicos e enfermeiros que arriscam a vida pelo próximo, os bombeiros que socorrem quem precisa, os polícias que asseguram a ordem, os trabalhadores que sofrem privações, os comerciantes que vêm o seu ganha pão fugir pelos dedos das mãos, os jornalistas que buscam a informação, verdade e o esclarecimento dos cidadãos e, no fundo, todas as comunidades que se encontram sob quarentena dias a fio, começando pela situação dramática em que se encontram as populações de Wuhan e da província de Hubei.
Na semana passada morreu alguém cujo nome ficará gravado para a posteridade como símbolo dessa heroicidade que, muitas vezes, passa simplesmente por cumprir o dever com a verdade e o interesse público, mesmo sofrendo consequências. O médico Li Wenliang alertou para os primeiros casos de um surto de uma doença semelhante à pneumonia atípica (SARS) em Wuhan e foi lamentavelmente repreendido pelas autoridades. Ele próprio ficou infetado e acabou por perder a vida, provocando uma onda de comoção na sociedade chinesa, levando a exigências, justíssimas, de alívio do sistema de controlo e censura na China Continental. Tudo aponta para que o atraso na comunicação por parte das autoridades locais da ocorrência deste surto não se deveu apenas a erros de avaliação por parte dos dirigentes, mas também a um sistema que não premeia os portadores das “más notícias”. Sendo claro que a prioridade vai para a mobilização nacional e popular em curso no combate à epidemia, o Governo central não pode deixar de agir com firmeza e profundidade para enfrentar problemas sistémicos. Não apenas a proibição do comércio de animais selvagens, reforma do mecanismo de alerta de doenças infeciosas ou fiscalização rigorosa da segurança alimentar, mas também – essencial – perceber os efeitos nefastos de um sistema obsessivo de controlo da informação e ir ao encontro da expectativa manifestada nas últimas semanas por tantos cidadãos de liberdade de expressão, abertura e transparência. Afinal, como terá dito Lenine, só a verdade é revolucionária.