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“Justiça está cada vez mais sob pressão mas mantém-se imparcial”

Philip Dykes vai cumprir o terceiro mandato consecutivo como presidente da Associação dos Advogados de Hong Kong (Bar Association). Um feito que não se repetia há quase 30 anos. Para momentos excecionais, soluções excecionais, justifica. Em entrevista ao PLATAFORMA, o advogado de Direitos Humanos mostra-se surpreendido com algumas questões em Macau face ao que se passa em Hong Kong mas ressalva: “Não se pode comparar o incomparável”. Usa a mesma resposta para comentar a violência policial e dos manifestantes. Não percebe de onde vem o discurso oficial que insiste na intervenção estrangeira para justificar a oposição ao Governo de Carrie Lam e a Pequim, e garante que, apesar da pressão política crescente, a Justiça em Hong Kong é independente.

– Que importância tem assumir o lugar pelo terceiro mandato consecutivo?

Philip Dykes – Não é comum. Mas  os estatutos da Associação dos Advogados permitem. Foi-me pedido para fazer o terceiro mandato por membros do meu conselho e outros advogados para quem era importante que continuasse por causa dos distúrbios em Hong Kong, das questões legais que têm surgido e atenção internacional. Acham que fiz um bom trabalho ao nível da associação mas também no que respeita a explicar a uma audiência internacional o que se está a passar em Hong Kong. No ano passado, estive em seis ou sete encontros para falar com membros de diferentes associações. Um trabalho que vou continuar este ano. 

– Quebrou uma prática que se vinha seguindo nas últimas décadas, o que motivou críticas. Não considera saudável que haja mudança?

P.D. – Não vejo motivos para me criticarem. Primeiro porque os estatutos o permitem. Depois porque têm liberdade para se candidatarem se entendem que devia ser outra pessoa. Ninguém se candidatou. Algumas associações permitem que o presidente permaneça vários anos. Tenho a impressão inclusive que em Macau o presidente da Associação dos Advogados está no lugar há bastante tempo. 

– Hong Kong está a atravessar um período sério de caos social e político. Que papel pode ter na solução da crise?

P.D. – O presidente é responsável por cerca de mais de mil advogados. Não reclamo o monopólio no que diz respeito a posições sobre questões legais. Desempenho as minhas funções de acordo com o que me permitem os estatutos, que diz que devemos defender os valores da Lei Básica e da Bill of Rights de Hong Kong (legislação sobre Direitos Fundamentais) assim como o Estado de Direito. Sempre que há questões que consideramos serem ameaças, os estatutos obrigam o conselho a pronunciar-se. Pronunciámo-nos sobre a Lei da Extradição e oposição subsequente, e defendemos que a gestão do problema não foi perfeita. Insistimos na importância de haver um inquérito independente. Ajo com base no que o meu grupo de conselheiros defende, e são cerca de 20. 

– Mas que papel pode ter a associação? O advogado Ronny Tong, por exemplo, entende que se trata de uma crise política e como tal não há espaço para os advogados interferirem. 

P.D.  É indiscutível que é um problema político. A associação disse isso. Ofereci a nossa ajuda ao Governo caso decidisse avançar com o inquérito independente. Mas concordo completamente com a opinião de que a solução tem de ser primeiramente política. E é disso que as pessoas em Hong Kong estão à espera. 

– Qual é a solução?

P.D. – Não sou político, mas é óbvio que a população está a pedir que haja um progresso no que diz respeito à questão ‘um homem, um voto’. Seria algo que poderia ajudar. 

– Um dos graves problemas apontados pelos manifestantes é a perda de direitos, liberdades e autonomia da região, consagrados na Lei Básica. Sente o mesmo?

P.D. – Certamente que vejo essa questão no que concerne ao progresso relativo à reforma política na eleição do Conselho Legislativo e do Chefe do Executivo porque está prevista na Lei Básica ‘um homem, um voto’ e passados 22 anos da Declaração Conjunta não foram feitos grandes avanços. Agora que metade do caminho foi percorrido, percebe-se que a população questione quando terá a oportunidade de ver cumprido o princípio de ‘Hong Kong governado pelas suas gentes’. É evidente a frustração. 

– Considera que o princípio Um País, Dois Sistemas está a ser respeitado por Pequim?

P.D. – Pode ver-se que as pessoas em Hong Kong sentem que é muito mais Um País, do que os Dois Sistemas, e expressaram as suas preocupações. Recordam-se do que aconteceu há uns anos quando pessoas [os livreiros] foram retiradas das ruas de Hong Kong e levadas para o outro lado da fronteira [China continental], o que entra em total conflito com o princípio. Estas pessoas têm as suas apreensões, que são bem conhecidas e estão na base dos protestos.

– O poder judicial é independente da interferência política?

P.D. – É independente. Está cada vez mais sob pressão mas cumpre os critérios de independência e imparcialidade. A maioria dos juízes julga o melhor que sabe de acordo com a sua interpretação da lei e com uma atitude independente mostrando que não tem medo ou favorece alguma das partes em causa. 

– Como referiu, os tribunais estão sob crescente pressão…

P.D. – A pressão é fruto das expectativas. O tribunal é acusado de ser demasiado brando ou demasiado severo. Estas críticas estão a crescer. Os tribunais decidem e é óbvio que alguma das partes vai ficar desiludida. Mas tem de se aceitar que os juízes estão a fazer o seu melhor e que se vive numa sociedade de Estado de Direito, com uma Justiça independente. Só tem de se aceitar o que decidem em vez de os perseguir e de os acusar de serem parciais. Não se leva as coisas a esse extremo.  

– Os tribunais começaram a ser alvo de vandalismo por parte de manifestantes. O que pensa disso?

P.D. – Não se critica a Justiça escrevendo slogans no edifício do tribunal. Se se está em desacordo, se se acha que foi parcial, mostra-se a insatisfação através de um debate civilizado. O que não é eticamente aceitável é atacar um juiz, acusá-lo de ser politicamente parcial e não ter provas para o sustentar.

  A Associação dos Advogados tem recebido críticas que a acusam de condenar a violência policial mas de não fazer o mesmo com os abusos dos manifestantes. A seu ver é diferente?

P.D. – A associação sempre condenou a violência. A diferença é esta: atirar um cocktail molotov ou destruir uma loja é um crime claramente identificável. Se for visto a fazê-lo, é detido, é acusado e é julgado, ou seja, será responsabilizado. E isso é básico. Toda gente sabe. A violência policial é diferente porque não há responsabilização se não for parada. Um polícia bater na cabeça de alguém quando faz uma detenção não é crime. É muito diferente da situação de um cidadão, que é responsabilizável perante a Justiça. 

– Não é uma questão de proporção mas de quem a exerce?

P.D. – Pode dizer-se que o exercício desenfreado da violência por parte da polícia é particularmente perigoso contra o Estado de Direito. Não se pode ter agentes do Estado que não são responsabilizáveis. Não se pode comparar o que é incomparável. Condenámos várias vezes, como continuamos a fazer, os cocktails molotov. Mas a violência policial é especialmente perturbadora. Não é justo acusarem-nos de que não condenamos o vandalismo ou determinado civil que atirou um cocktail molotov. É óbvio que está errado. 

– Pequim insiste na questão da interferência estrangeira e reitera a necessidade de reforçar o patriotismo. O presidente Xi Jinping afirmou em Macau que poderá haver mudanças na fórmula Um Princípio, Dois Sistemas para a melhorar. Como o interpreta, e que impacto pode ter a iniciativa nas instituições e autonomia de Hong Kong?

P.D. – No que respeita aos residentes em Hong Kong que não são nacionais chineses – como eu – a nossa posição está assegurada na Lei Básica, concebida precisamente para lhes dar segurança, o direito de trabalhar e de contribuir para a sociedade, e isso foi acordado na Declaração Conjunta. Não entendo qual é o ponto porque, citando, “os estrangeiros” contribuíram para a prosperidade de Hong Kong e continuam a fazê-lo. 

– É a esses que se referem?

P.D. – Tem de se ter atenção aos termos. Se se está a dizer que estrangeiros residentes como eu já não são bem-vindos para trabalhar, é bastante sério. Se se está a referir a outros… De quem exatamente se está a falar? Qual é o problema? Ouço dizer de que os estrangeiros estão por detrás da contestação mas honestamente não o vejo de todo. O Governo de Hong Kong tem sido desafiado a apresentar provas que mostrem a intervenção de forças estrangeiras e até agora não apresentou nada. 

– Como interpreta a afirmação do presidente sobre as mudanças eventuais ao princípio Um País, Dois Sistemas?

P.D. – Terá a sua visão sobre o que são melhorias. Não ajuda muito dizer que poderá haver algumas mudanças sem especificar quais. É possível pedir-lhe um comentário sobre isso? É verdade que a Lei Básica pode ser melhorada, mas é preciso ouvir propostas.

– O advogado Simon Chiu, por exemplo, afirma que “Tem havido quase uma total ruptura na comunicação com as autoridades do Continente desde que assumiu a liderança”. Como será a relação com o Continente?

P.D. – Fui presidente da associação antes [durante dois anos desde 2005]. Levei várias delegações ao Continente e eu, inclusive, falei pessoalmente com as partes na China continental. Há dois anos houve uma secessão nos contactos. O lado do Continente pode não estar interessado em prosseguir com os convites à Hong Kong Bar Association. A rutura não foi deste lado, mas do lado da China continental. Seria interessante perceber quais são os motivos. Porque não pergunta a Pequim?

– Ronny Tong também disse que “Um terceiro mandato de Dykes poderia criar obstáculos aos advogados que querem expandir negócios no Continente”. 

P.D. – Não o ouvi explicar os motivos que o levam a acreditar nisso. Tenho a certeza de que se os membros concordassem, teria tido oposição nas eleições e não tive.

– Em janeiro do ano passado afirmou, referindo-se ao Continente: “Somos dois sistemas completamente diferentes. Estamos apenas a tentar perceber quais são as diferenças para que nos consigamos entender melhor”. É possível sem que nenhum dos sistemas perca identidade?

P.D. – A fim de manter a integridade do princípio Um País, Dois Sistemas tem que se perceber quais são as diferenças. Isso não é respeitado do lado do Continente quando quebra a comunicação com a Associação dos Advogados de Hong Kong. 

– Macau é retratado por Pequim como o exemplo que Hong Kong deve seguir, especialmente na implementação do príncipio Um Príncipio, Dois Sistemas. É um exemplo?

P.D. – Macau é diferente de Hong Kong. Não se pode comparar o incomparável. Há tradições legais, sociais e históricas diferentes. A forma como trabalhamos pode não ser da inteira satisfação das autoridades do Continente e podem alegar que o sistema de Macau funciona. Mas Macau não é melhor. 

– Em Macau há leis em vigor que foram polémicas em Hong Kong como o artigo 23, da segurança nacional, e a lei que limita a juízes chineses o julgamento de casos relacionados com a segurança de Estado. O que pensa do facto de legislação que foi controversa em Hong Kong vigorar sem problema em Macau?

P.D. – As pessoas em Hong Kong são muito mais críticas. 

– Sobre o artigo 23, relativo à segurança nacional, ainda está por legislar em Hong Kong. 

P.D. – É uma obrigação constitucional. Quanto mais cedo for resolvido, melhor. Mas tem de ser elaborado com grande sensibilidade da parte do Governo e do Continente.

– Portanto acha que vai ser implementado? 

P.D. – Sim. Acredito que eventualmente haverá legislação sobre segurança nacional, mas não antecipo que aconteça no próximo ano ou no seguinte. É uma obrigação. A Lei Básica diz que o artigo 23 tem de ser implementado. 

– Quando acha que poderá acontecer?

P.D. – Agora será muito difícil e a Chefe do Executivo já disse que, depois dos acontecimentos deste ano, o artigo sobre segurança nacional terá de esperar mais tempo. 

– O presidente do Tribunal de Última Instância de Macau, Sam Hou Fai, disse, numa entrevista ao China Daily, que a proibição do protesto em Macau que pretendia condenar a violência policial em Hong Kong é um exemplo de como o sistema judicial contribui para a estabilidade da cidade. Deve e pode um juiz fazer comentários desta índole, e a Justiça tomar decisões com base no critério da estabilidade?

P.D. – Diria que ficaria muito surpreendido se o presidente do Tribunal de Última Instância de Hong Kong fizesse um comentário como esse. As decisões judiciais em Hong Kong não são tomadas a pensar na possibilidade de terem um efeito benéfico no Continente e os juízes de Hong Kong não dariam a impressão que a forma como a decisão é recebida do outro lado foi em algum momento relevante. 

– Surpreende-o?

P.D. – Como advogado em Hong Kong é-me difícil entender como é que o direito à liberdade de expressão pode depender de uma pessoa provar ao tribunal de que o que vai ser dito é objetivamente verificável, neste caso provas de que a violência da polícia de Hong Kong era ilegal. Aplicar isso como critério de forma generalizada para permitir a expressão de opiniões tornaria a leitura dos jornais profundamente enfadonha. No entanto, aceito que a lei em Macau é diferente e que uma decisão como essa não seja excecional de acordo com o vosso sistema. E afirmo-o sem qualquer intenção de desrespeito É apenas a constatação de que aqui fazemos as coisas de forma diferente. 

Catarina Brites Soares 10.01.2020

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