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Pesticidas no centro da polémica

O uso de pesticidas na produção de alimentos tornou-se, nas últimas semanas, no centro de um amplo debate no Brasil, uma das maiores potências agrícolas do mundo e em que uso destes químicos tem sido considerado abusivo por ambientalistas e peritos internacionais. 

Em junho passado, uma comissão especial da Câmara dos Deputados (câmara baixa parlamentar) aprovou uma proposta com mudanças sobre o processo de registo dos pesticidas, que motivou reações diversas entre pesquisadores, ambientalistas e membros de organizações não governamentais. O Projeto de Lei 6299/2002, o novo sistema normativo ainda em discussão no Congresso brasileiro, foi idealizado e é defendido por setores ligados ao agronegócio como uma modernização necessária da Lei dos Agrotóxicos do Brasil, em vigor desde 1989. 

Já pesquisadores e instituições ligadas a saúde pública, críticos das ideias trazidas pela nova legislação, apelidando-a de ‘Projeto de Lei do Veneno’, consideram que flexibilizar o registo de novos pesticidas poderá introduzir produtos danosos à saúde de agricultores, consumidores e ao meio ambiente.

As principais mudanças apresentadas na lei são a substituição do termo pesticidas por “defensivos agrícolas” ou “produtos fitossanitários”, a autorização de licenças temporárias para produtos que já sejam registados em pelo menos três países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e o estabelecimento de novos critérios de avaliação. 

Fernando Carneiro, investigador da Fundação Oswaldo Cruz e membro do Grupo Temático Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), considerou que o projeto traz riscos reais à saúde pública e, se for aprovado em definitivo, representará um retrocesso na legislação brasileira.

“No Brasil já há uma cultura de uso extensivo de agrotóxicos que gerou um quadro de pouca fiscalização e alto índice de contaminação dos alimentos e do meio ambiente. É um quadro muito preocupante, de muita vulnerabilidade. Isto pode agravar-se ainda mais” se o projeto de lei do “veneno for aprovado”, disse à Lusa, dando conta do que o preocupa na nova legislação. 

“O primeiro problema seria a mudança de nomenclatura, uma medida tomada para mascarar a capacidade tóxica dos produtos, o segundo a retirada de poder de órgãos importantes do processo de liberação de substâncias, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Ministério do Meio Ambiente [o registo seria confirmado agora pelo Ministério da Agricultura], e o terceiro, a autorização da venda temporária de substâncias sem estudos adequados de impacto”, enumerou.

Já José Otávio Menten, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) que integra a Universidade de São Paulo (USP), disse acreditar que o uso de pesticidas ajudará o Brasil a manter-se na liderança do mercado mundial de produção de alimentos.

“O Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo (e a China um dos maiores importadores de produtos agrícolas brasileiros) e a tendência é que isto cresça. Estamos numa região tropical em que a frequência e a severidade das pragas é muito maior do que nos países de clima temperado. As pragas, apesar de todas os cultivos e manejos, impedem que a produção agrícola aumente em 40 por cento (…) Elas [as pragas] têm de ser combatidas através de manejo integrado e isto inclui o uso dos produtos fitossanitários [pesticidas]”, explicou.

“Estes produtos [pesticidas] evitam que haja uma crise de alimentos e, portanto, são importantes do ponto de vista agro-económico. Do ponto de vista da saúde não temos evidência de que eles estejam causando algum dano à saúde das pessoas ou ao meio ambiente”, acrescentou.

O especialista da Esalq considerou que a nova lei que quer flexibilizar o registo de pesticidas representa um avanço porque trará ao mercado local substâncias mais modernas e seguras.

“O processo de registo de novos produtos no Brasil é muito bom, mas é muito moroso e isto tem-nos levado a um quadro de não podermos utilizar tecnologia nova (…) Se nós quisermos continuar com uma agricultura sustentável temos de aumentar não só a quantidade produzida, mas a qualidade para atender o nosso mercado e o mercado externo. Se não produzirmos aqui [alimentos] com qualidade, o mercado externo colocará barreiras não tarifárias aos nossos produtos. O Brasil não vai dar um tiro no pé e utilizar produtos que podem impedir a comercialização no mercado externo’, salientou.

Uso de pesticidas no Brasil e nos países da União Europeia

Uma pesquisa denominada “Atlas do agrotóxico no Brasil e conexões com a União Europeia”, publicada em 2017 pela pesquisadora Larissa Mies Bombardi, da USP, mostrou que o Brasil compra 20 por cento dos pesticidas vendidos, anualmente, no mundo. Em média, o Brasil permite o uso 200 a até 400 vezes mais de pesticidas nos alimentos do que os países da União Europeia. 

No caso de defensivos químicos presentes na água, o mesmo levantamento indicou que esta diferença pode chegar a até 5.000 por cento. A pesquisa mostrou ainda que no Brasil é autorizada hoje a venda de 504 tipos diferentes de substâncias (agrotóxicas) e que, deste total, 147 são proibidas na União Europeia.

Tomando como exemplo o café, o estudo frisou que “o Brasil exportou em 2016 um volume equivalente a 976 milhões de dólares norte-americanos apenas para a Alemanha, principal comprador da União Europeia. No Brasil, para o cultivo do café, estão autorizados 121 diferentes pesticidas, dos quais 30 são proibidos na União Europeia, ou seja, um quarto, ou 25 por cento”. 

Diante deste quadro, Larissa Mies Bombardi explicou à Lusa que o uso excessivo de pesticidas já configura um caso grave no país.  “Mesmo antes da discussão deste projeto de lei temos um quadro de contaminação da população que se mostra muito severo. Temos em média oito pessoas intoxicadas por agrotóxico, diariamente, no Brasil. O próprio Ministério da Saúde estima que para cada caso destes há 50 outros casos que não chegaram ao seu conhecimento”, disse.

Sobre o Projeto de Lei 6299/2002, a pesquisadora da USP reavaliou que as mudanças propostas são, extremamente, negativas. “Haverá um risco de nos tornarmos mais vulneráveis porque, de acordo com o projeto, existirá a possibilidade de autorizarmos o uso de um determinado agrotóxico por um período temporário quando ele já está legalizado em três países da OCDE. Na OCDE temos a UE, Japão, os EUA, mas também países como México, Turquia e Chile [com legislações menos rigorosas] e, assim, poderíamos autorizar substâncias que não passariam por uma avaliação aqui”, destacou.

A investigadora alertou também para o perigo da introdução do termo “risco inaceitável’ na nova lei, usado como parâmetro para regular produtos que podem causar problemas de saúde. 

“Na lei atual [sobre o uso de pesticidas], o artigo 6.º diz que os produtos que causam cancro, que produzem má formação fetal ou que produzem alteração genética são proibidos. No texto que está a ser discutido isto muda para produtos que tenham ‘risco inaceitável’. Introduz-se a expressão ‘risco inaceitável’ e isto vai abrir uma janela jurídica que não poderemos fechar mais porque é difícil determinar o que é risco aceitável ou inaceitável do ponto de vista da má formação fetal ou do cancro”, concluiu. 

Carolina de Ré –Exclusivo Lusa/Plataforma Macau 27.07.2018

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