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As dores de cabeça do sistema de justiça

As fragilidades da justiça timorense preocupam juízes e advogados. A falta de critério nas penas e um sistema judicial opressivo prejudicam o país e todos se queixam. 

A sentença do julgamento mais mediático da história do jovem sistema de justiça timorense poderá estar para breve. Uma decisão que marca o fim de um longo processo que visa duas ex-ministras (Emília Pires das Finanças e Madalena Hanjam, vice da Saúde) e que se soma à lista de ex-governantes já julgados em Timor-Leste.

Pelo banco das testemunhas passaram alguns dos líderes históricos do país – incluindo os ex-Presidentes Xanana Gusmão e José Ramos-Horta e o ex-primeiro-ministro Mari Alkatiri – confirmando a natureza de um caso que começa com uma compra de camas e pode acabar com uma pena de 10 anos de prisão, se o coletivo de juízes der razão ao Ministério Público.

Emília Pires e a ex-vice-ministra da Saúde Madalena Hanjam são acusadas de irregularidades na compra de centenas de camas hospitalares em contratos adjudicados à empresa do marido da primeira, com um suposto conluio entre os três para a concretização do negócio, no valor de 800 mil dólares. Um ano antes do julgamento começar, a própria Emília Pires garantiu que já tinha sido informada de que a sua pena seria de 10 anos de cadeia. Depois do julgamento, em que a defesa contestou todas as acusações da procuradoria, o Ministério Público dá como provados todos os crimes e pede 10 anos de cadeia para ambas.

O caso recorda a muitos em Timor-Leste o caso de 2012 quando a então ministra da Justiça, Lúcia Lobato, foi condenada a cinco anos de prisão por participação económica em negócio que representou, disse o Tribunal, um prejuízo ao Estado timorense de 4.200 dólares. O caso causou ampla polémica em Timor-Leste mas, mais do que isso, abriu clivagens entre magistrados e Governo – e posteriormente entre Díli e Lisboa – que ainda estão a ser saradas.

“Justiça de gamela”, diz Portugal

A polémica foi tanta que vários anos depois, em fevereiro passado, chegou mesmo ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) português que teve que se pronunciar sobre a decisão do Conselho Superior da Magistratura (CSM) português suspender uma magistrada portuguesa que apontou irregularidades no processo. O acórdão desse processo foi quase, na prática, a primeira ‘avaliação’ das fraquezas do sistema judicial, deixando fortes criticas ao que foi, também a ação em Díli de alguns do magistrados portugueses, levando Lúcia Lobato a anunciar queixas contra o Estado português.

“O processo-crime que culminou na condenação da antiga ministra da Justiça de Timor-Leste, Lúcia Lobato, está repleto de vícios, ilegalidades e violações dos mais elementares princípios do direito processual penal e das garantias do arguido”, refere o acórdão do STJ. O acórdão refere-se mesmo a “uma espécie de justiça de gamela” que “é pura e simplesmente inadmissível num Estado que se quer de Direito e de Direito democrático.”

Os dois casos levam a aumentar, entre muitos – timorenses e estrangeiros – as preocupações sobre as fraquezas do sistema de justiça timorense. Preocupação que se cimenta quando se olha para o caso que envolve o casal português de Tiago e Fong Fong Guerra que foram detidos em outubro de 2014 quando se preparavam para mudar de Díli para Macau, depois de vários anos a viver em Timor-Leste.

Demorou praticamente dois anos para o Ministério Público timorense deduzir acusação contra ambos – Tiago Guerra chegou a estar oito meses em prisão preventiva -, pelos crimes de peculato, branqueamento de capitais e falsificação documental. A acusação foi assinada pela procuradora timorense Angelina Joanina Saldanha – a mesma do caso de Emília Pires – num processo que tem como coarguido (e pelos mesmos crimes) o cidadão norte-americano Bobby Boye, um ex-conselheiro do setor petrolífero que foi condenado por um tribunal federal norte-americano a seis anos de prisão e a devolver mais de 3,51 milhões de dólares a Timor-Leste.

A demora em levar este processo a uma qualquer conclusão mostra, para muitos, as fraquezas do setor da justiça que se evidenciam em particular perante a crescente complexidade jurídica dos casos em apreciação. Atrasos na resolução de casos, disparidades em penas, vários processos iniciados contra ex-membros do Governo, falta de magistrados e outros operadores judiciais e carências de outros meios humanos, técnicos e materiais continuam a suscitar preocupação na sociedade timorense.

Falta de recursos humanos, materiais e técnicos, formação inadequada ou deficiente de magistrados e funcionários judiciais, tribunais sem recursos básicos ou insuficientes juízes para o Tribunal de Recurso, o que deixa paralisados importantes processos, são alguns dos problemas que o setor enfrenta.

Agravados pelas dificuldades com o português, que sentem muitos magistrados, incapazes de dominar a língua em que está redigida a legislação do país, ela própria a necessitar de reforma. Os códigos penais e civis, por exemplo, são praticamente decalcados dos seus congéneres portugueses, com as penas a serem agravadas apenas para os tentar equipar à dimensão das penas dos congéneres indonésios que se chegaram a aplicar em Timor-Leste.

Rui Araújo, primeiro-ministro timorense, explica que o Governo continua a trabalhar na reforma da justiça timorense, sublinhando porém que ela tem que ocorrer abrangendo vários setores, incluindo o quadro legislativo. “É importante o Estado encarar como parte da construção do Estado o setor da justiça como um setor importantíssimo, que não tem merecido toda a atenção necessária durante os últimos 14 anos”, afirmou recentemente. “É preciso que seja estudado com mais cautela, com mais atenção, para se resolver os problemas de uma forma mais compreensiva e integrada”, sublinhou.

O Governo criou uma comissão para reformar o setor da justiça e que está a analisar “tudo em detalhe”, tendo sido solicitados vários pareceres técnicos “não só sobre o funcionamento mas sobre todo o enquadramento legal no país”. “Além disso, a justiça funciona também como resultado do processo de formação dos operadores de justiça que tivemos nos últimos 14 anos”, frisou.

Como se não bastasse ao setor as dificuldades que já enfrenta, inerentes às carências com que o país vive, continua a evidenciar-se alguma tensão entre o braço da justiça e o Governo, que eclodiram no final de 2014 com a decisão de expulsão dos magistrados internacionais que estavam a operar em Timor-Leste. Só em fevereiro deste ano, 15 meses depois da crise, é que Portugal e Timor-Leste assinaram um novo protocolo de cooperação na área da Justiça, para “aclarar” procedimentos futuros, marcando o que os dois ministros disseram na altura seria uma “nova aurora e uma nova relação” bilateral. 

António Sampaio-Exclusivo Lusa/Plataforma

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