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Plataforma jurídica com vista para o futuro

Frederico Rato e Pedro Cortés explicam a aposta na Ilha da Montanha, onde a sociedade de advogados que representam nesta entrevista inaugura hoje uma joint venture com escritórios de Hong Kong e da China. O ambiente de investimento é “apetecível” e um ordenamento jurídico “tailor made”, pode “minar” o Direito continental com a common law e o Direito de raiz portuguesa. O futuro está em Hengqin, dizem, onde a plataforma jurídica, moldada pela visão de Deng Xiaoping, cruza a integração regional com a internacionalização da economia. No caso de Macau, pela via lusófona. “Hengqin é de facto o lugar geométrico de três jurisdições e uma experiência pioneira: um país, dois sistemas, três ordenamentos jurídicos e um sub-ordenamento que resulta de tudo isto”, sintetiza Frederico Rato.

– Porquê esta aposta em Hengqin?

– Frederico Rato: Desde a deliberação do Conselho de Estado da República Popular da China (RPC), em 2009, que na província de Guangdong criou a Zona Económica Especial (ZEE) de Hengqin, Macau é vizinho de um regime económico e financeiro fundamentalmente dirigido para a atração de investimentos; da própria RPC, mas especialmente de Macau, Hong Kong, e todos os outros países e parceiros económicos no mundo. Para além dos setores tradicionais de investimento – indústria e comércio – o Governo chinês abriu Hengqin à capacitação de serviços, com determinadas regras e numerus clausus.

– Qual é a quota para advogados?

– Pedro Cortés – Dez escritórios, no limite, dentro desse regime especial criado para os advogados atuarem na Ilha da Montanha. Entre esses, cinco são parcerias entre escritórios de Hong Kong e da RPC; Shenzhen e RPC; ou Macau, Hong Kong e RPC, que é onde nos integramos.

– Macau tem quota?

F.R. – Dos dois lugares que poderiam ser preenchidos por escritórios de Macau, ocupámos o primeiro; após dois anos e meio de negociações, com alguma tramitação burocrática e administrativa, mas fundamentalmente contratual.

Quem são os vossos parceiros?

F.R. – Fongs Lawyers, de Hong Kong; e Zhong Yin Law, provavelmente o terceiro maior escritório da China. Nós completamos esse tríplice entendimento numa joint venture exclusivamente dedicada aos limites da ZEE e, como é evidente, sujeita à lei chinesa. Mas Hengqin tem uma lei tailor made; isto é, um regime de investimento altamente atrativo, um regime fiscal – brando – comparável ao de Macau e outros fatores que tornam apetecível abrir um escritório de advogados nesta cultura jurídica formatada por três jurisdições diferentes.

– Estaremos a falar sobretudo de advogacia de negócios?

P.C. – Advocacia de negócios, direito financeiro, direito bancário, direito da construção e tudo o que está relacionado com isso; mas também propriedade intelectual – não tanto patentes, mas sobretudo marcas, porque vão também ter estatuto especial na Ilha da Montanha. No futuro podemos ter outras áreas de atuação; depende muito do que possa aparecer, daquilo que os nossos clientes queiram e do que nós possamos oferecer.

– Vão atrair clientes das três geografias presentes najoint venture?

P.C. – Não só. Queremos levar clientes daqui para lá, com certeza, mas também clientes internacionais que queiram investir na Ilha da Montanha. Olhando até para o exemplo deste jornal – PLATAFORMA – teremos em Hengqin uma montra para empresas de língua portuguesa, que se vão estabelecer ou pelo menos ter negócios com empresas chinesas; mas a ideia é também trazer clientes da RPC para Macau. 

– A imagem de Hengqin em Macau é a de uma ZEE onde o investimento é difícil, as regras são pouco transparentes e o custo dos terrenos inflacionado… O que mudou para acreditarem neste investimento?

F.R. – Não sei se é bem assim… Houve uns assombros de vontade transparecidos em alguma imprensa local, tais como a aglutinação de 20 investidores de Macau que haviam reservado uns hectares para aproveitamento industrial diversificado, nomeadamente na área da Medicina Tradicional Chinesa; houve também um certo bruá sobre David Chao e o Macau Legend relativamente à construção de um parque recreacional, simultaneamente gastronómico e com arquitetura portuguesa, inspirada no estilo manuelino.

– Carlos Marreiros chegou a ser anunciado como arquiteto desse projeto…

F.R. – Exatamente. Houve algumas movimentações no sentido de aproveitar o que Hengqin significa. Mas concordo que não é – pelo menos não aparenta ser – um movimento consistente ou um investimento organizado por parte das forças vivas de Macau. De qualquer maneira, embora se calhar hoje a um ritmo um bocadinho mais lento, assiste-se em Hengqin a um desenvolvimento à vista desarmada, nomeadamente ao nível da construção, que é o que dá mais nas vistas, quer no campo recreacional, quer no habitacional e no comercial. Pode ainda não ser acompanhado, a par e passo, por outro tipo de atividades económicas, mas o mínimo sinal de desenvolvimento sugere a necessidade de aconselhamento e apoio jurídico ao investimento. Daí o nosso apetite por este espaço jurídico-económico.

– Hengqin é a plataforma por excelência para a integração regional?

P.C.  – Sem qualquer dúvida! Olhamos para a Ilha da Montanha como um passo importante para integrar Macau na RPC. Não se pense que no dia 19 de Dezembro de 2049 somos Macau e, no dia seguinte, somos plenamente integrados na RPC – se até lá for essa a decisão política. Esses passos vão sendo são dados com alguma distância. Entretanto, 17 anos da RAEM passaram a correr e o tempo que falta para os 50 passa também a correr. Não gosto de ser fatalista em espaços temporais, mas este é mais um passo importantíssimo para a integração de Macau na RPC; se calhar, o mais decisivo que vimos até hoje. É também essa a perspectiva de escritório com esta tradição, que foi o primeiro a integrar sócios chineses, em 1997. Nessa altura, preparando-se para a transição e a atuação profissional no espaço soberano da China; agora, estamos a prepararmo-nos para a integração que já está a ocorrer. Os sinais estão aí quase todos.

-Francisco Gonçalves Pereira, sócio fundador deste escritório, descreveu na altura o ordenamento jurídico chinês como um sistema pluriconstitucional. Hengqin é mais uma prova da capacidade alglutinadora de arquétipo constitucional sui generis…

F.R. – É verdade. Também aí o nosso saudoso Francisco Gonçalves Pereira foi pioneiro, numa edição que fez escola e é hoje bibliografia obrigatória em Ciência Política e Direito Constitucional, na Faculdade de Direito de Macau. O Francisco descreveu a tentativa harmónica – com algum sucesso, como hoje é evidente – que a China levou a cabo para integrar os sistemas capitalista e socialista – “Um País, Dois Sistemas” – e jurisdições diferenciadas, sem abdicar do valor soberano da sua Constituição. Hengqin é de facto o lugar geométrico de três jurisdições e uma experiência pioneira: um país, dois sistemas, três ordenamentos jurídicos e um sub-ordenamento que resulta de tudo isto.

– Serão mesmo fundíveis ordenamentos tão diferentes como os da China, Macau e Hong Kong?

P.C. – É uma experiência piloto, com um sistema jurídico que aproveita experiências constitucionais e jurídicas de três ordenamentos diferentes. A partir daí, como há anos diz o Frederico, o movimento pode não ser de lá para cá, mas sim de cá para lá. Isto é, a influência jurídica pode partir de Macau para a China – e não o contrário.

– Hengqin é o laboratório onde a China contém os riscos?

F.R. – O que eu digo é que o pensamento de Deng Xiaoping era muito mais profundo do que a simples enunciação de “Um país, Dois Sistemas”, ou de 2049 como data para o final do processo de transição. A contaminação é ao contrário: é o segundo sistema que vai contaminar o primeiro e tudo será harmonizado até 2049; com os dois sistemas num só e as três ordens jurídicas numa só.

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A diversificação que Macau não fez

– Edmund Ho ainda tentou anexar – ou comprar – a Ilha da Montanha, mas já não foi a tempo. Essa extensão parece hoje incontornável, mas em regime controlado pela China… 

F.R. – Começaria por dizer que houve ocupação portuguesa das ilhas de D. João, Lapa e Montanha. Depois perceberam que não tinham gente nem instrumentos de poder suficientes para ocuparem a península de Macau, Taipa, Coloane e, simultaneamente, mais três ilhas grandes… e simplesmente desistiram da sua ocupação. Hengqin junta hoje as ilhas de D. João e da Montanha – ligadas por aterro – que não fomos capazes de ocupar mas que, já na altura, eram a extensão territorial harmónica. Macau só se pode expandir para ocidente; a oriente só mesmo por aterro. Percebendo isso, o Governo chinês, por deliberação do Conselho de Estado, também em 2009, permitiu a Macau estender a sua Administração para Hengqin, através da Universidade. Agora abre regimes de deslocação ainda mais libertos, quer para pessoas quer para automóveis.

– Além da experiência jurídica e da plataforma de integração regional, qual é o desenho chinês que se pode antever para Hengqin?

P.C. – A Ilha da Montanha é também uma forma de a RPC dizer a algumas forças de Macau que consegue ali a diversificação que não se fez aqui. Vamos ter resorts integrados – o Chimelong tem oito milhões de visitantes/ano – e as concessionárias de jogo querem lá desenvolver novos projetos. Aqui tivemos jogo, jogo, e jogo… mas hoje percebe-se que se calhar não foi a melhor opção. A plataforma dos produtos portugueses – ou quaisquer outros – também é importante, como é o Creative Valley. Ao fim de 17 anos, Macau descobriu uns pequenos nichos e lembrou-se que há cá pessoas com capacidade criativa, mas penso que a RPC está a dizer que vai fazer qualquer coisa diferente do que temos aqui.

– Vai Hengqin ser o tal centro internacinal de turismo e lazer?

F.R. – Devemos ver isso como corolário da estratégia de transformar Macau no primeiro grande centro mundial de turismo e divertimento. Não havendo aqui área suficiente para expandir, Hengqin, com o triplo da área de Macau, é a suplência necessária. A falta de espaço deixa de ser desculpa e os agentes de Macau podem investir em Hengqin, a nossa terra de expansão por excelência.

– À sua escala pequena, Macau produziu grandes escritórios de advogados; mas no Delta do Rio das Pérolas a escala é incomparável. Hengqin é também a janela para o futuro dos jovens advogados de Macau?

P.C. – Primeiro é preciso vermos quem são esses jovens advogados, que estão a sair da Universidade de Macau, naturalmente, como a regressar das universidades portuguesas. Temos alguns desses estagiários no escritório, como os há noutros escritórios; alguns são já juízes, outros assessores ou funcionários públicos. Certo é que o futuro da profissão é para quem fala português, inglês e chinês – infelizmente não consigo falar chinês. Macau terá sempre o seu ordenamento jurídico mas, nesta área, para não sermos engolidos pela China temos de nos juntar aos nossos vizinhos e parceiros chineses. Prevemos ter um escritório maior, mas se olharmos racionalmente vemos que o mercado local é limitado e não permite grande expansão. Temos aqui por volta de 13 advogados séniores, e ainda estagiários e outros juristas; mas isso não passa de um sub-departamento de qualquer escritório com dimensão na RPC, com mais de mil advogados e uma imensidão de cidades e de clientes. Temos de olhar para Hengqin também como forma de internacionalizar o escritório, desenvolvendo parcerias dentro dessas plataformas.

– Plataformas lusófonas e regionais?

P.C. – Sem dúvida! Esse é o futuro. Olho para o escritório na Ilha da Montanha e vejo ali amanhã advogados angolanos, brasileiros, etc. Isso da nossa perspetiva; os nossos parceiros podem um dia ter advogados chineses em Luanda, Díli, Maputo… nos mercados onde o nosso know-how é maior.

– É esse o papel de Macau na construção da plataforma jurídica?

F.R. – Como advogados de língua portuguesa estamos num observatório privilegiado a ver o que se passa na China e nesta parte da Ásia, em termos de atração de investimento desses países para cá. Mas também o movimento oposto é favorável à nossa cultura linguística e jurídica, canalizando investimentos da Ásia e da China para os países de língua portuguesa.

Paulo Rego

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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