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Entre ruínas, em Quissanga e Macomia ensaia-se a reconstrução sob o espetro do medo

Estêvão Chavisso

As vilas e aldeias devastadas por rebeldes nos distritos de Quissanga e Macomia têm marcas do terror estampadas em cada esquina e, entre ruínas, ensaia-se a reconstrução, mas o trauma é grande e paira ainda medo entre as comunidades

“Eles tomaram tudo isto [a aldeia] e destruíram todos os bens que estavam aqui, inclusive as casas e escolas”, conta à Lusa Samuel Saíde, a metros das ruínas da sua antiga casa que sucumbiu à barbaridade do grupo que atacou, há pouco mais de um ano, a aldeia 19 de outubro, no distrito de Quissanga, na província de Cabo Delgado.

Os rebeldes atacaram a aldeia de Samuel Saíde, 56 anos, em fevereiro de 2020, dias após uma fuga em massa daquela população rural, que já sabia que os insurgentes estavam a aterrorizar regiões próximas.

Além de matar um número desconhecido de pessoas, os rebeldes saquearam bens e atearam fogo às casas (maioritariamente feitas de adobe), daquela comunidade esquecida no meio do nada, a poucos metros da ponte que separa Quissanga de Macomia, dois dos nove distritos afetados pela violência armada em Cabo Delgado nos últimos quatro anos.

Um dia antes do ataque, Samuel Saíde fugiu para casa de familiares que vivem na vizinha sede do distrito de Macomia, a poucos quilómetros da aldeia 19 de outubro, e só voltou quatro dias depois, após ter a certeza de que os rebeldes tinham abandonado a aldeia, mas a sua casa tinha sido queimada e os seus bens saqueados.

“Houve muito serviço [para construir a casa], bati-me na machamba [horta] para conseguir dinheiro. Quando cheguei aqui [após a fuga] e não apanhei nada, fiquei muito furioso”, declarou Samuel Saíde.

Mesmo “furioso” e sem meios para a sobrevivência dos seus oito filhos, tendo em conta que foi obrigado a abandonar a sua horta devido à insegurança, Saíde quer recomeçar a vida na sua aldeia, estando já a construir pessoalmente a sua nova casa em frente às ruínas da antiga.

Embora a vontade de Saíde seja grande, o medo de novos ataques persiste entre as mais de 300 pessoas que vivem na comunidade, apesar das várias posições militares estacionadas ao longo da estrada que atravessa o coração da pequena aldeia (EN380), uma das principais do Norte de Cabo Delgado.

O artesão Yassin Swahili é outro entre os tantos residentes da comunidade que decidiu voltar para casa, após mais de um ano num centro de acolhimento em Metoro, uma das regiões de um distrito vizinho que acolhe dezenas de pessoas que fugiram aos ataques armados em vários pontos de Quissanga.

“Queimaram tudo e não encontrei nada quando voltei”, lamenta Swahili.

A situação de Yassin Swahili é mais complexa em dias de chuva, na medida em que os 19 elementos da sua família dormem num único quarto da parte da sua casa que escapou à ação dos insurgentes.

“Nós dormimos aqui fora. Agora, estou a tentar construir uma nova casa, mas não tenho nada”, declarou.

O sofrimento provocado pela insurgência armada em Cabo Delgado para Yassin Swahili ficará cravado para sempre na sua memória: o filho de 18 anos morreu num dos campos de acolhimento em Metoro devido a uma doença repentina.

“Eu me sinto mal”, lamenta o artesão, sentado nas ruínas da sua antiga casa enquanto produz uma das cestas que vende para sustentar a sua família, que agora voltou para a sua zona de origem e, mesmo visivelmente traumatizada, espera que a tranquilidade prevaleça.

O chefe da aldeia 19 de outubro, Bento Abel, garante à Lusa que a região está tranquila, como resultado do trabalho das forças governamentais, apoiadas agora por militares do Ruanda e da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral.

“Queremos paz para que voltemos a produzir. Nós sempre produzimos, desde arroz, milho e mandioca, e agora nós estamos a sofrer”, acrescenta Abel.

Não muito longe da aldeia 19 de outubro, a vila sede do distrito de Macomia também volta a ganhar cor: não há registo de ataques há vários meses e as populações estão gradualmente a voltar para as suas zonas de origem.

“Muitos estão a voltar para casa”, conta à Lusa Celestino Ossufo, um residente da vila sede do distrito de Macomia que preferiu ficar no seu bairro, mesmo quando, há vários meses, os insurgentes invadiram o local.

Em Macomia, o rasto de destruição também é profundo: os rebeldes destruíram infraestruturas do Estado, vandalizaram o hospital local, atearam fogo a várias casas e postos da polícia.

“Encontramos as nossas casas todas destruídas. Não sabemos o que eles queriam ou que eles querem”, declarou Celestino Ossufo.

Depois de Mocímboa da Praia, Muidumbe e Palma, os distritos de Quissanga e Macomia estão entre os mais afetados pela atuação de grupos armados em Cabo Delgado, incursões que já provocaram mais de 3.100 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED, e mais de 817 mil deslocados, segundo as autoridades moçambicanas.

A luta contra os insurgentes em Cabo Delgado ganhou um novo impulso, quando em 08 de agosto forças conjuntas de Moçambique e do Ruanda reconquistaram a estratégica vila portuária de Mocímboa da Praia, que estava nas mãos dos rebeldes há mais de um ano e que era considerada “base” destes grupos armados, tendo sido o local onde os rebeldes protagonizaram o seu primeiro ataque em outubro de 2017.

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