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“A narrativa está cá, o negócio não”

Jorge Valente; macaense bilingue; empresário; explica que o ambiente económico em Macau está difícil e os negócios cada vez mais reduzidos ao turismo e serviços anexos. Quando pensa em investir; resta-lhe cruzar a integração regional com a plataforma lusófona: “A oportunidade está em produzir na Grande Baía para exportar na Lusofonia, e importar da Lusofonia para a Grande Baía”. Um caminho longo, porque faz sentido na teoria, mas na prática ainda não existe

Paulo Rego

– Quais são hoje as áreas de maior interesse, quando olha para Macau enquanto empresário, numa ótica de análise de investimento?

Jorge Valente – É nos serviços de turismo. Mas em Macau estamos a enfrentar custos cada vez mais altos e com menor retorno. Como locais, devemos sempre tentar investimentos leves, que tenham bom retorno e que evitem tudo o que é a longo prazo; pois quanto mais demorado for, maior é o risco. Como as coisas estão cada vez mais incertas, temos de evitar esses investimentos pesados que não dão para depois levar o investimento para o outro lado ou mudar de ideias.

Hoje em dia, os investimentos mais pesados são para as grandes empresas; sejam os casinos ou as empresas estatais que vêm da China, e não olham para o custo do capital. Nós não temos essa vantagem.

Nesse sentido, temos de evitar a restauração, por exemplo, que é um investimento pesado, com muita burocracia, licenciamento difícil, mão de obra difícil. Do outro lado, na China, já é menos pesado.

– Quer dizer que todas as áreas para além dos serviços de turismo são de risco e é difícil perceber onde estão os nichos da oportunidade?

J.V. – Sim. Claro que também há outros serviços que se podem prestar à população e aos turistas. Mas na área do imobiliário, por exemplo, hoje é tudo muito incerto. Nós, população, e o Governo de Macau, estamos entalados na ironia entre dois mundos: queremos que as pessoas vão para a Grande Baía e Hengqin, mas também queremos que Macau esteja cheio. E isso não é possível. Nesse sentido, estamos a ver que a procura no imobiliário – residencial e comercial – continua a descer, mesmo depois do Governo reduzir os impostos e dar incentivos. Há outro problema: em termos de vantagens comparativas com as regiões vizinhas, nós vemos que o Hong Kong está muito mais ativo na absorção do investimento, quer chinês quer internacional. Macau está a ter muita dificuldade, porque os outros estão a fazer muito mais.

Quando há uma indústria que domina todas as outras (Jogo), é como uma árvore que acaba por matar as ervas que tentam nascer à volta.

– Há mais oportunidades no Continente? Hengqin, Zhuhai, Grande Baía no geral?

J.V. – Sim; sobretudo olhando para aquilo que são os custos – mais baixos e de menor risco. Na restauração, e em outras áreas, o licenciamento é mais rápido, a obra que se tem que fazer para abrir um estabelecimento é mais rápida e barata. Depois, uma vez tendo estabelecimento aberto, é fácil contratar pessoal. Não se tem de esperar entre seis a nove meses para o licenciamento, para depois não ter ‘blue cards’; entretanto já passou um ano a pagar custos sem ter receitas. Por outro lado, em Macau os senhorios sabem que têm mais poder, porque não há oferta e podem duplicar a renda no fim do contrato. Na China isso não acontece. Quando se alteraram as leis em Macau, a relação de poder entre senhorio e arrendatário ficou muito desequilibrada. Em Hengqin, por exemplo, saiu uma legislação há um ano que permite que se produza lá – desde que não sejam indústrias poluentes – a menor custo; para depois vender em Macau. Aí temos uma vantagem comparativa, porque as pessoas continuam a confiar mais nos produtos das regiões administrativas especiais. Mas para isso já é preciso outro nível de investimento.

– Virando-nos para plataforma lusófona… estando cá a narrativa; ela gera negócio?

J.V. – A narrativa está cá; o negócio não. As empresas estatais chinesas poderiam abrir aqui uma janela, porque elas próprios fazem muitos negócios e precisam de formas de passar e gerir o capital. Até agora passam muito por Hong Kong, que tem um mercado financeiro robusto. Mas isso poderia passar para Macau; dava muito negócio aqui para os bancos e também para outros. É uma oportunidade para já perdida, mas eu tenho esperança que ainda aconteça.

Hong Kong está muito mais ativo na absorção do investimento, quer chinês quer internacional. Macau está a ter muita dificuldade, porque os outros estão a fazer muito mais

– Será só porque as grandes empresas chinesas não precisam de passar por Macau; ou o perfil do empresário local, habituado aos casinos, negócios com o Estado, e especulação imobiliária… não responde às necessidades da plataforma lusófona?

J.V. – É um pouco de tudo. As grandes empresas estatais, ou já têm negócios, ou estão cotadas em Hong Kong. Podem por isso não ter pensado na alternativa que Macau representa. Por um lado, há uma certa inércia; por outro, falta de iniciativa do lado dessas empresas grandes. Depois, como empresários locais, nós também demoramos a chegar a essas empresas; elas não sabem onde estamos, nós não sabemos onde elas estão. E, de facto, antes de 2019, estava tudo virado para os casinos. Quando há uma indústria que domina todas as outras, é como uma árvore que acaba por matar as ervas que tentam nascer à volta.

– Como empresário e investidor, como olha as para a plataforma lusófona? Mediação de negócios, investimentos, nichos de importação/exportação… Quais são nesta altura as áreas de oportunidade?

J.V. – Todas devem ser desenvolvidas; mas a única que se está a aproveitar é no setor agroalimentar, porque há muita procura na China. E mesmo no agroalimentar, é só certas coisas. Estamos a falar de todos os enlatados, dos empacotados. Não estamos ainda a olhar para a soja, ou o açúcar. Esses negócios de grande escala não passam por cá. É mesmo só os produtos acabados; e estamos a falar de coisas pequeninas: um contentor, dois, três… não é muito. Mas há tanto negócio, e tantos projetos… muitos deles até bastante interessantes. Quando a China começou a construir muita coisa em Angola, não vieram via Macau – e muita coisa correu mal. Se calhar podia teria corrido um pouco melhor.

Temos de agarrar as poucas vantagens que temos e usá-las para nos focarmos na plataforma dos Países de Língua Portuguesa

– Integração regional e plataforma lusófona são os dois ramos da diversificação económica?

J.V. – Sim. A diversificação económica, na verdade, tem que ser forçada. Por que é que se fala tanto em diversificação económica desde 1999? Hoje já se percebeu: não há mais salas de jogo VIP, não há mais junkets… e, portanto, ou vou ser funcionário público – corro o risco de fazer a exame todos os anos e não entrar – ou vou para croupier nos casinos; ou vou para condutor de autocarro ou táxis… porque são essas as profissões com maior garantia de sobrevivência em Macau. Contudo, muitas pessoas já perceberam que isso não é vida. Um jovem de 20 e tal anos não quer fazer isso para o resto da vida. Ou seja, hoje o que pensam é que, já que a diversificação é obrigatória, onde é que a podemos forçar? A nível pessoal, acredito que a oportunidade está em produzir na Grande Baía para exportar na Lusofonia, e importar da Lusofonia para a Grande Baía.

– Não escolhe entre uma, ou outra?

J.V. – Ambas se cruzam e essa é a verdadeira oportunidade. Funciona para os dois lados: posso produzir um sumo de laranja na Grande Baía e vender em Angola; ou trazer uma coisa do Brasil, como um sumo de açaí, e vender no mercado da Grande Baía.

– O facto de haver ainda pouca experiência em Macau é uma deceção, ou torna tudo isto numa oportunidade ainda maior?

J.V. – Isso deixo para a História decidir. Só daqui a 20 anos, olhando para trás, é que se pode perceber. O que sei, para ser sincero, é que os estudantes – ou jovens – de Macau não são os mais competitivos, se os compararmos com toda a China. Temos de agarrar as poucas vantagens que temos e usá-las para nos focarmos na plataforma dos Países de Língua Portuguesa. Por exemplo, uma coisa muito simples: um empresário do interior da China quer fazer negócio no Brasil, em Angola, ou em Portugal. Só para tirar os vistos, demora seis meses; enquanto nós, residentes de Macau, podemos dizer: amanhã vou para o Brasil, uma semana depois estou em Portugal, a seguir Angola. Portanto, é usar o que temos como armas e não nos focarmos nas áreas onde o resto da Grande Baía tem vantagens comparativas.

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