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Espremer (2)

Miguel Veríssimo

Continuando a análise, focada em pontos-chave dos fenómenos que caracterizam o “ciclo de vida” da nossa ação transformadora – Extração> Produção> Utilização> Regeneração; no artigo Espremer (1), debrucei-me sobre a apropriação dos recursos naturais; e de como a “desterritorialização“ ou a falta de ligação ao território, impacta os equilíbrios infraestruturais dos ecossistemas, e rompe com a solidariedade geracional, acentuando a clivagem entre cidadãos/consumidores próximos e arredados das renovadas “parábolas do progresso”.

Nesta segunda reflexão relativa à etapa da PRODUÇÃO, vou-me focar no PROJECTO/DESIGN, e em como os “espelhos ideológicos” da ação política e depois económica e ecológica duma dada sociedade, determinam as metodologias projetuais, e consequentemente todas as etapas do “ciclo de vida”.

Assim, se o projeto (no sentido de tempo e cultura) começa dialético, à medida que as bases tecnológicas que criam as etapas históricas se vão sofisticando, o seu conceito e os produtos que dele resultam, vão-se balizando progressivamente por uma espécie de fantasia, gerida pela mera eficiência da produção e economia de custos, tornando-se o projeto refém do voluntarismo inovador e da necessidade de satisfazer os caprichos do consumo. Esse vazio de objetivos provoca um desalinhamento dos pilares socioculturais e ambientais que o alicerçaram, ética e politicamente. (lembrando Lavoisier e Rousseau e recentemente Georgescu-Roegen e Herman Daly)

Nesse sentido, a evolução tecnológica cria quebras culturais constantes. É como um espelho que limita a leitura histórica e a função de aprender com os sedimentos culturais passados, mais próximos da apropriação da natureza e de como guardamos na memória coletiva sinais claros da forma como agimos nos ciclos passados de abundância e escassez. Por isso é que, elevando-se progressivamente os patamares de consumo, a economia (Oikos Nomos – gestão da casa) se desliga da ecologia (Oikos Logos – estudo da casa) criando a ilusão de que, separadamente, serão capazes de vencer qualquer constrangimento  científico ou limite material, entrando-se numa espiral performativa de expansão até à rotura e ao encontro de novos equilíbrios homeostáticos.

Olhado dessa forma, o “episódio pandémico” é particularmente interessante!

Anunciado há muito, um vírus parou a cidade e o projeto “Mecanicista” que a alicerçou, quebrando o espelho do tempo e revelando três aspetos importantes:

 – Os limites de crescimento do modelo de desenvolvimento, e as consequências no nosso modo de vida do “campo de batalha” em que transformamos a relação com a natureza;

– A consciência de que só colaborando é possível enfrentar grandes desafios e defender os interesses da comunidade, fazendo mais com menos.

– A arqueologia das ideias e a função da experiência acumulada; de como a integramos na cultura e na tradição, e a como as esquecemos confiantes de que estão ultrapassadas.

Curiosa também é a confortável inércia de algumas sociedades, esquecendo a necessidade constante de se adequar o projeto às dinâmicas ambientais, “insistindo nos mesmos erros, esperando resultados diferentes” como ironizou Einstein.

Mas entanto, uma cultura de projeto considerada inovadora e virtuosa aos olhos de um novo paradigma de desenvolvimento, nas cinco funções vitais que alicerçam um sistema social:

– Alimentação; Ciência e Inovação; Trabalho; Abrigo; Mobilidade e Comunicação

é também muito pesada para a “mochila ecológica”, e os seus benefícios, difíceis de disseminar local e globalmente. Isso porque, em tempos de transição, além da inércia e reação de um “status quo” confortado pelas “conquistas alcançadas”; um novo projeto de desenvolvimento, precisa de muitos recursos humanos, materiais e financeiros, a que só as comunidades com infraestruturas socioculturais robustas, conseguem chegar. Os custos e a rentabilização da operação de mudança são assim a grande razão de, na “máquina do tempo” que é a evolução humana, as transições serem tempos em que se diluem os laços de solidariedade e o sentido coletivo e colaborativo; principalmente nas etapas imediatamente após a escolha do “cabaz de soluções“ técnicas e tecnológicas que irão ditar o modo de vida das gerações seguintes.

Sabemos há muito, que o problema atual da civilização é sobretudo um problema de “DESIGN THINKING”. Desde logo porque a ideia de Natureza no projeto Mecanicista, embora determinante como espaço de laboratório, se foi reduzindo a um meio para atingir um fim – a construção duma identidade antropocêntrica que justificasse a apropriação da natureza pondo-a à disposição da indústria.

Se a ideia de “O homem como medida de todas as coisas” pressupunha uma evolução para a construção duma consciência humana face a uma natureza transcendente; com o modelo Industrial e o confinamento urbano, deu-se um abandono sistemático do contacto direto com a realidade, quebrando-se os elos holísticos e sistémicos do projeto afastando-se dos ciclos de vida da natureza.

Esse desligamento criou a ilusão de recursos infinitos e fundamentou os modelos económicos de crescimento sem limites. A máquina e a energia fóssil potenciaram a produção, e o projeto/design foi crescendo em autoestima e ambição artificializando tudo. Tudo é desenhado e tudo é projeto – o território, os alimentos, as plantas e animais, o habitar, o movimento e a comunicação, até o nascimento e a morte. Vivemos num mundo projetado, fabricado, etiquetado e sobretudo com um preço, que empurra os custos ambientais para as gerações futuras. Estima-se que o ser-humano “ultramoderno” viva 90% da sua vida em ambientes artificializados; fazendo da natureza selvagem um produto escasso e exclusivo, multiplicando-se os “refúgios na natureza”, “off-grid”, e longe da agora perigosa, “gregariedade urbana”.

E essa é precisamente a condição dos tempos de transição – a procura, descoberta e escolha dos alicerces do modelo seguinte, coexistirem com a destilação e o juízo do modelo que termina e começa o seu julgamento histórico.

É a esperança nessa transição que mantém o projeto vivo. E o projeto procura agora na integração – CIÊNCIA ARTE TECNOLOGIA um método de REPENSAR REDUZIR REUTILIZAR REGENERAR simplificando o design de sistemas cada vez mais complexos e os processos herdados das etapas anteriores da Revolução Industrial; repensando os “ciclos de vida“, de produção e de valor, à luz duma “economia circular”, com menos energia incorporada, menos intensidade material, automatizando a indústria para ganhos de eficiência, precisão e otimização, mimetizando soluções da natureza que resultaram da evolução cíclica ao longo de milhões de anos de repetição e reequilibrio.

É ainda cedo para percebermos se as opções já tomadas e em fase de implementação nas no nosso quotidiano serão as mais apropriadas. 

Na minha opinião, a discussão está a ser pouco participada. Para mudar o projeto, devia-se ter começado pela discussão ideológica, o grande pilar duma nova ideia de projeto.

Resta-nos a certeza de que em tempos de transição quando o novo e o velho coexistem, será a história e a natureza a julgar as opções que tomamos.

1-      The Limits to Growth: The 30-Year Update _ by Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows, Jørgen Randers _ 2004

2-      Cradle to Cradle: Remaking the Way We Make Things _ by William McDonough _ 2002

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