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O que esconde um ‘lai si’?

Em ocasiões especiais, oferece-se um envelope vermelho contendo dinheiro como sinal de boa sorte. Mas o costume oriental pode favorecer a existência de corrupção, conflitos de interesse ou abuso de poder.

Simboliza boa sorte, mas acaba por poder ser um veículo para comportamentos ilícitos, admitem os inquiridos pelo PLATAFORMA. A tradicional entrega do envelope vermelho — ‘lai si’, em cantonês — contendo dinheiro, dependendo das circunstâncias, pode favorecer crimes como a corrupção ou o abuso de poder.

Quando se formou o primeiro Governo da Região Administrativa Especial de Macau, em 2000, o então novo comissário Contra a Corrupção, Cheong U, poucos dias antes do Ano Novo Lunar, pedia aos funcionários públicos que recusassem a oferta de ‘lai si’ durante as festividades. 

O atual Estatuto dos Trabalhadores da Função Pública prevê que os funcionários não podem obter vantagens no exercício das suas funções. Além disso, o Comissariado Contra a Corrupção (CCAC) emitiu instruções alertando que os trabalhadores da Administração não podem receber mais de 500 patacas.

E, depois da condenação por corrupção do ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas, Ao Man Long, foi alargada a legislação anticorrupção ao sector privado, ainda que esta não verse especificamente sobre a atribuição de ‘lai si’. “Dantes, o problema da corrupção era quando o corruptor passivo era funcionário público. Isso era uma limitação”, diz o advogado João Miguel Barros.

Sobre o costume generalizado de atribuição de ‘lai si’, o advogado distingue duas situações. Pode falar-se de “’lai si’ encapotados” que implicam “pagamentos corruptos para coisas de grande dimensão” ou da criação de “uma situação de dívida, favor ou simpatia”. Neste último caso, salienta, ao receber-se um ‘lai si’ está-se “a abrir a porta à suspeita, podendo ficar-se, ainda que num momento posterior, numa situação de compromisso ou de conflito de interesse.”

Em maio deste ano, veio a público um caso de alegada corrupção eleitoral, investigado pelo CCAC. Em causa, estava Cloee Chao, que lidera a lista Linha da Frente dos Funcionários do Jogo, e uma possível atribuição de ‘lai si’ através da plataforma móvel WeChat como recompensa pela assinatura da comissão de candidatura para as eleições legislativas. A líder associativa veio depois explicar que se tratava de um jogo envolvendo valores inferiores a uma pataca. 

Questionado pelo PLATAFORMA, o CCAC não refere estatísticas em relação a 2017. Porém, no que toca a 2016, diz, em nota enviada por e-mail, que recebeu um total de 910 queixas e relatórios, dos quais 252 tiveram seguimento. Destes, o CCAC concluiu a investigação preliminar de 182, alguns dos quais envolvem casos de corrupção. Nenhum envolve a atribuição de ‘lai si’.  

Olhando mais para trás no tempo, chega-se a 2014. Dois proprietários de um restaurante terão tentado subornar funcionários do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) com o propósito de passar numa inspeção aos equipamentos de exaustão de fumos. Segundo o CCAC, citado na imprensa da época, os funcionários do IACM recusaram a oferta mas, mais tarde, um deles “descobriu o ‘lai si’ no bolso das calças”. Os proprietários do restaurante terão oferecido ao pessoal do IACM cerca de 4,500 patacas  de forma a “influenciar o resultado do exame”, incorrendo no crime de corrupção ativa.

No relatório do CCAC, publicado em 2013, 264 casos desencadearam uma investigação preliminar. Uma das ocorrências descritas neste relatório dava conta de uma situação de abuso de poder que envolvia a atribuição de ‘lai si’. “O CCAC descobriu que um funcionário da DSAT terá implicitamente solicitado a oferta de ‘lai si’ e doces a um trabalhador em serviço externo de uma escola de condução, aquando da deslocação deste à DSAT, no período do Ano Novo Lunar do corrente ano [2013], para a apresentação de pedidos”, lê-se. “Assim, no dia seguinte, a mesma escola de condução, através do seu trabalhador atrás referido, entregou ao arguido 14 ‘lai si’ no valor de 100 patacas cada e ainda uma caixa de chocolates. Dos 14 ‘lai si’ recebidos, dois ficaram na posse do arguido e os restantes 12 foram distribuídos aos colegas do serviço.” 

O funcionário tinha por funções a coordenação dos trabalhos relativos à emissão de cartas de condução e os assuntos relacionados com veículos, tratando ainda pessoalmente dos pedidos apresentados pelas escolas de condução. 

Tudo depende da intenção

Desmond Lam, professor da Universidade de Macau, diz que se trata de um costume que visa garantir “boa sorte” a quem dá e recebe. “Pode também ser usado como forma de retribuir a alguém pelo que fizeram no último ano, num casamento ou no Ano Novo Chinês”, diz. 

Claro que pode também ser usado “pelos mal intencionados” para outros fins menos nobres. Aliás, o docente acredita que pode “favorecer” a existência de situações mais dúbias. “Depende de se a pessoa é íntegra”, salienta. E, em última análise, o professor da Universidade de Macau admite que “algumas pessoas poderão usar este costume para recompensar pessoas, na expectativa de que haja reciprocidade” numa altura posterior.

Este costume oriental pode parecer “estranho” aos ocidentais, que se sentem por vezes “desconfortáveis” com a prática. “Os ‘lai si’ tradicionais contêm basicamente moedas, que visam proteger dos espíritos malignos”, diz. Na base, está uma boa intenção. “Agora podes abusar e pôr mais dinheiro do que é necessário, mas nunca houve um limite [no sector privado]”, afirma, questionando: “Será que mil patacas ou duas mil patacas já é demasiado?” Sobre se este costume devia ser regulado em legislação específica, Desmond Lam afirma que “seria difícil”.

Há que ter em atenção as alturas em que os ‘lai si’ são entregues. Os momentos normais são: “casamentos, grandes festas de aniversário, o Ano Novo Chinês, grandes celebrações.” Fora destas datas pode “parecer estranho”. 

Não se deve “rejeitar” um ‘lai si’, afirma Lam. “Traz má sorte para mim [o ofertante] se rejeitares”, diz. Dá-se ainda atenção aos montantes envolvidos. “Costuma ser um número par — não se dá um nove, mas um 98 estaria bem”, refere. 

O investigador João Guedes — jornalista e anterior investigador da Polícia Judiciária — diz que dificilmente constitui um crime de corrupção, devendo evitar “olhar-se para estas coisas da perspetiva ocidental”. Salientando que se trata de um costume, quando “constitui de facto corrupção” é porque envolve montantes “muito altos” que provavelmente não cabem em envelopes vermelhos. 

No caso dos jornalistas, por exemplo, “teria de haver intenção ou vontade de corromper”, e isso seria sempre difícil de provar. No setor da construção, pode haver tais situações, mas “provavelmente não vai em envelopes vermelhos”.

Nalguns casos, admite o investigador, quem oferece um lai si pode “nunca falar sobre” a expectativa de reciprocidade. Mas, “quando chegar o momento”, pode esperá-la. E se no sector público tem de ser regulado e proibido, no setor privado é difícil. 

A prática por setor

Para o presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM), José Carlos Matias, os jornalistas “não devem aceitar ‘lai si’ no exercício da sua atividade profissional”, mencionando o disposto no ponto 10 do Código Deontológico do Jornalista, vigente em Portugal: “O jornalista deve recusar funções, tarefas e benefícios susceptíveis de comprometer o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional.” E, uma vez que, ao aceitar-se um envelope vermelho, não se sabe o que se encontra no seu interior, José Carlos Matias afirma que não depende do montante. “Entendemos ser uma questão de princípio”, salienta.

Por seu turno, Iris Ma diz que a Associação dos Jornalistas de Macau “nunca encoraja jornalistas a receber ‘lai si’”, uma vez que “quem providencia comissões aos média provavelmente espera um artigo favorável”. E, se o resultado não é o que o que quem oferece pretendia, os jornalistas “podem ser acusados de receber dinheiro sem assegurar um artigo positivo”, salienta a presidente da associação. Além de “afetar a imagem dos jornalistas”, prejudica também a “credibilidade do setor”. 

Ainda assim, na sua opinião, esta situação não acontece com grande frequência em Macau. E garante que “há um número significativo de órgãos [de comunicação social] que pede aos jornalistas para rejeitarem ‘lai si’ durante o Ano Novo Chinês”, enquanto outros “pedem que os outros funcionários devolvam os ‘lai si’ que recebem no decurso do trabalho do dia-a-dia”. 

Para o presidente da Associação dos Engenheiros de Macau, Clement Sio, tratando-se  de um costume popular, é difícil estabelecer-se uma relação entre a atribuição de ‘lai si’ e a possibilidade de aparecimento de situações que constituam crime. “Depende do montante no interior do envelope vermelho”, refere. Além disso, diz Clement Sio, nos eventos em que estes envelopes circulam “nunca ninguém diz quanto está lá dentro”, sendo muito difícil apurar se há montantes irrazoáveis. E pergunta: “O que constitui demasiado dinheiro?” 

Luciana Leitão

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