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O preço da ignorância

João MeloJoão Melo*

O humor resulta da inteligência, assim o nível de humor depende do nível de inteligência.

Não sei se nos subterrâneos das cidades as baratas se reunem em clubes de stand up comedy divertindo-se com humor “barato”, ao género do universo Gary Larson, mas está comprovado que animais considerados inteligentes denotam mecanismos mentais de humor. Tendo a não gostar de anedotas e detesto particularmente anedotas com estereótipos raciais, de género, ou xenófobas. Significa que sou politicamente correcto ou não tenho humor? Podem ser ambas as opções, mas assim que vislumbro a chegada de uma os neurónios mobilizam-se para a esquecer. Porquê? Porque a pessoa que a conta geralmente é acrítica e eu não pretendo ser intoxicado. Sim, tão importante como os alimentos que ingerimos há que ser criterioso com o que lemos e ouvimos porque tudo será absorvido pelas células, as do cérebro também contam. Se formos expostos durante muito tempo a uma narrativa ela torna-se orgânica, por isso me aborrece escutar certas opiniões que reconheço não terem sido produzidas pela pessoa que as emite; é como se essa pessoa tirasse da sua boca uma pastilha elástica (a opinião), me a oferecesse para eu pôr na minha, mas a pastilha já havia sido mastigada por alguém antes dela. Quem?

Vivemos em rede inundados de informação, somos milhares de milhões com necessidade de nos destacarmos, logo todos falamos e poucos escutam realmente os outros; se os que escutamos forem iguais a nós compreende-se que nem valha a pena ouvi-los, afinal é a mesma história com outra personagem. Sempre sujeitos às leis da natureza, a lei da economia de meios leva-nos a preferir escutar quem vai de encontro ao que pensamos, e como as preocupações quotidianas preenchem todo o nosso tempo, opinion makers e influencers são as referências actuais. Desconheço quem cogitou determinada afirmação mas quando a ouço reproduzida aos milhares por pessoas plenamente convencidas de que foram elas que a pensaram, assusto-me, porque como qualquer animal reconheço as minhas crias, sei o que me custou criá-las, e se as pessoas não reconhecem as suas há aqui um grave problema de identidade, logo de respeito por si próprias e, por conseguinte, de respeito pelos outros. Outra consequência de escutarmos só o que vai de encontro ao nosso conforto, é acabarmos por cristalizar processos mentais, tendendo para a convicção e ofendendo-nos facilmente com argumentos contrários. Não fora a sorte de ter desenvolvido esse filtro mental e eu seria um dos tipos mais fanáticos do mundo, formatado e preparado para qualquer tema, religião, política, desporto, valores, não interessa o canal, a motivação já cá “morava”. Não por acaso há tipos que se tornaram políticos extremistas e que vieram do extremismo de outras áreas. Depois os seus discursos activam essa predisposição que existe dentro de nós, se ela não existisse não haveria caixa para ressoar. Eis como Hitler, um indivíduo carismático mas vulgar, singrou. Não vou dissertar sobre propósito ou manipulação ocultas, limito-me a constatar a vitória do ideal nazista ao metamorfosear-se em milhares de milhões de Hitlers, aquilo que hoje somos. Esta é a “beleza do mal”, a maneira como evolui para tornar desnecessária uma figura referencial. Os vilões somos todos nós, é assim que vejo a personagem dos filmes Matrix, o agente Smith (o apelido mais comum da cultura inglesa, que coincidência…), e foi por desenvolver esta ideia já há uns anitos que compus os temas “A Invasão dos Vulgarianos”, nas palavras do crítico de música Fernando Magalhães “uma perturbante metáfora electrovirtual sobre a paranóia urbana”, e “Violência” que conta a história de um dia de normal violência quotidiana do Silva (qualquer um de nós), editados em 1997, dois anos antes do lançamento da franquia Matrix. Estaremos realmente a viver num regime totalitário governado por milhões de Silvas?

Bem, muitos dos sinais andam aí. Neste tipo de regime o pensamento crítico e o humor são das primeiras coisas que desaparecem de circulação. “Claro que há humor”, dir-me-ão; talvez, mas de que nível? O género de humor das mais fantásticas séries humorísticas de décadas passadas (Monty Python, Black Adder e tantas outras) seria ofensivo, impensável nos dias que correm, aliás algumas já o eram no seu contexto. Por exemplo “Police Squad” estreou em 1982 nos Estados Unidos e só durou 6 episódios; a qualidade e densidade do humor era tanta que a série foi retirada porque o público americano não a entendia. Os seus autores acabaram por perceber o “problema”: pegaram no “concentrado”, “diluíram-no” com bastante água, ganhando fortunas com as “limonadas” Top Secret, Aeroplano, Naked Gun e sequelas; podiam ser aguadas mas o sabor do concentrado estava lá, já o humor criado nos últimos anos dificilmente sabe a alguma coisa, reduzimo-nos a “comédias de situação”. Voltando às anedotas até falo com conhecimento de causa e por isso creio que quanto mais o humor se compõe de anedotas e “apanhados” mais infantilizada é a sociedade. Propaguei anedotas durante a juventude (a forma de me salientar no meio da multidão) até apresentar programas do género e verificar que as histórias eram sempre as mesmas, só mudava o espaço, o tempo e as personagens. Concluí que devem existir uns cinco argumentos tipo que produzem umas cinquentas histórias, resultando em umas quinhentas anedotas. Como explicava Lisa Simpson ao pai Homer que chorava emocionado a ver um filme de natal na televisão e logo o considerou o melhor de sempre (emoções exacerbadas costumam render opiniões disparatadas), basicamente todos os contos de natal de sucesso actuais são reciclagens de “A Christmas Carol” de Charles Dickens… Não acham esta pobreza confrangedora? Certamente ainda existem grandes humoristas como Ricky Gervais mas o nicho de público que o aprecia torna-se cada vez mais restrito, engloba aquela classe de pessoas que vão sumindo, os pensadores críticos; mais uns anos e fica a falar sozinho ou retira-se, como tantos outros que se cansaram de falar para o(s) boneco(s). Terão perdido a piada? Não, nós é que entupidos de vulgaridade perdemos a capacidade de apreciar a excelência, e essa incapacidade estende-se a todas as áreas do espírito humano. Quem produz está atento ao mercado, tem-no bem identificado: para quê atirar dinheiro fora em pérolas que ninguém entende ou quer, ao invés de ganhar milhões explorando a vulgaridade? Gerou-se um círculo vicioso guiado pela oferta/procura e assim as artes vão morrendo, substituídas por produtos de consumo. Qual é o problema de as artes morrerem?

As artes estimulam a criatividade e o pensamento, aqueles tesouros dos quais estamos prestes a abdicar completamente, entregando-os nas mãos da Inteligência Artificial. Desprovidos destas características e vazios de conhecimento pouco mais nos restará no futuro do que rir de travessuras de animaizinhos ou da desgraça alheia. Batemos no fundo? Calma, descobri um nível mais baixo de ignorância: um americano perguntava “que língua se falava em Inglaterra antes da descoberta da América?” Isto é pior que ausência de conhecimento, é um erro instalado, o mundo ao contrário, o efeito a gerar a causa; entretanto pesquisei e percebi não se tratar de um caso único, muito pelo contrário. Tem graça? Para mim não, é deprimente, serve apenas para alimentar anedotas, mas também preocupa porque é no terreno da convicção que mais medra o radicalismo. Há 48 anos Sophia de Mello Breyner Andresen escreveu um artigo com o título “a cultura é cara, a incultura é mais cara ainda”, onde defendia que “a arte deve ser livre porque o acto de criação é em si um acto de liberdade”. Existe liberdade em 2023? Em teoria sim, na prática se as pessoas não estiverem motivadas para apreciar artes, se os artistas criarem condicionados pela lógica de mercado, então não existe liberdade nem arte.

Espero do fundo do coração enganar-me mas tudo indica que mais tarde ou mais cedo os ignorantes serão imolados como cordeiros inocentes, inconscientes ao destino que os espera. Os mais cultos que não fizeram nada para travar a ignorância alheia só terão consciência do alto preço que todos pagaremos quando chegar a factura.

*Embaixador do PLATAFORMA

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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