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O amor é a solução

João MeloJoão Melo*

Vivemos encaixados em três dimensões, as dimensões da matéria, juntamente com a quarta, o tempo.

A matéria organiza-se de várias formas, umas geram vida, algumas formas de vida geram consciência. Os elementos que nos compõem criaram-se no interior de estrelas em colapso, como disse Carl Sagan “somos feitos de pó de estrelas”. Quando a organização molecular das formas de vida se desfaz, dilui-se no todo universal, no fundo recicla-se. No livro Genesis da Torah está escrito “porquanto tu és pó, e ao pó hás de tornar”. Eis a condição material humana, pretender perpetuá-la é um acto de desespero ou soberba porque nenhuma organização material tem essa capacidade, nem as estrelas.

Em cada uma das suas obras Shakespeare trata o tema do amor através de diferentes perspectivas, apurando-as à perfeição como o artífice lapida o diamante, constituindo o conjunto das obras um dos mais completos manuais sobre o amor. Em “Sonho de uma noite de Verão” o amor exulta o fascínio da existência, a luz que vence a razão, unindo homens e deuses; é acerca deste amor que pretendo falar, de facto não uma faceta mas o coração do diamante. Este amor resulta do discernimento da alma e liga-nos às restantes dimensões, que se saiba dez comprovadas matematicamente. Há amor maternal, fraternal, piedoso, enfim, não findam os vários géneros, mas todos são manifestações do amor “original”. A paixão, por exemplo, acorrenta-nos à matéria, ao sentimento de posse; não tem mal, é mediante a paixão que obtemos um certo prazer (e sofrimento) nesta existência, inclusivamente nos reproduzimos, mas não se confunda a faceta com o eixo. O amor de que falo é leve, liberta e não se esgota. Quando uma relação acarreta “peso” e os parceiros sentem “as asas cortadas” o amor não entrou na equação ainda que pensem o contrário, quando se afirma “o amor acabou” é porque nunca existiu, iludidos ou não ligaram-se por outros motivos. Julgo que a filosofia budista se aproxima do conceito que tento exprimir, pelo menos advoga um caminho para a libertação, tal como a mensagem de Cristo que a maioria dos cristãos segue sem entender. Os Talking Heads cantavam no primeiro tema do seu primeiro álbum “love is simple as 1, 2, 3”, no entanto por ser tão simples é também tão difícil de compreender e aceitar, desconfiamos imenso da simplicidade. À medida que crescemos vamos esquecendo a essência, criando fachadas e entupindo-nos de defesas, por isso quando nos confrontamos com o verdadeiro amor sentimo-nos atingidos no núcleo e receamos que nos fragilize, que a interacção mais poderosa que gravidade, electromagnética, ou forças forte e fraca nos estilhace a imagem cristalina que tanto trabalho deu a construir e polir; desse modo vivemos a celebrar a forma do amor para evitar que chegue perto do conteúdo. Rotinados no subterfúgio vamos obliterando a matriz, passamos a considerar o amor complicado, aquilo em que nos tornámos. Num primeiro momento os que levam o verdadeiro amor a sério aparentam estar desligados da realidade, depois recordam-nos o que desejamos esquecer, ameaçando a segurança das nossas convicções bem como as da sociedade, logo são ridicularizados ou mesmo eliminados.

A matemática representa a linguagem do universo, o manual de instruções que determina como ele foi criado porém não explica quem concebeu a linguagem e para quê. Em 2004 publicou-se a conclusão sequencial do genoma humano, ficámos a conhecer todas as letras do texto do manual para criar um humano, mas nenhuma palavra ou capítulo explicam quem, o quê, e para que se escreveu este livro, a autoria e propósito são um mistério. Pressinto que uma pista para descodificar estes enigmas se encontre no amor. Não será obviamente a resposta científica para a almejada Teoria de Tudo que procura unir a Relatividade Geral com a Teoria Quântica de Campos, todavia pode ser uma partícula tão importante como a descoberta do gráviton se à investigação se juntar o propósito. Muitos cientistas consideram a vida sem sentido, decorrendo da natural organização dos elementos. Em 1997 escrevi uma música onde perguntava “que sentido é que isto faz? Nascer, levar um tiro e morrer”. Hoje acho que estava, como alguns cientistas estarão, demasiado apegados à matéria; eu era bastante vigoroso, incapaz de sentir na pele, sequer equacionar a deterioração que agora verifico. De uma forma ou outra a nossa avaliação do mundo tinge-se pelo padrão material, veja-se o caso de Steven Hawking que viveu grande parte da existência aprisionado numa condição física horrivelmente restritiva, desenvolvendo por compensação uma lógica inabalável; uma vez que a matéria é limitada tende a buscar equilíbrio, um cego, por exemplo, apura o sentido da audição. A vida de Hawking é um exemplo de superação, de génio humano ao estilo do herói da Antiguidade Clássica, o que me orgulha enquanto elemento desta espécie, mas noto que ele, eu, quem me lê, o aparelho onde me lê, tudo o que já se leu e será lido é simplesmente uma parte do todo. Levada às últimas consequências a racionalidade de Hawking pode ser restritiva…

O viés de cada um fornece pixels para compor a imagem, não a imagem total, além de que se não nos afastarmos deles só veremos pontos esborratados; é à distância que se percebe a imagem completa. A distância permite-nos ainda experimentar a relatividade do tempo: a luz que neste momento recebemos do Sol foi enviada há 8 minutos, o passado intervém no presente e até permite um vislumbre do futuro. Em viagem de helicóptero reparei num monte serpenteado por uma estrada estreita onde dois veículos circulavam, um descia-a, outro subia-a; do respectivo ponto de observação nenhum teria possibilidade de saber da existência do outro, eu sabia, e pela velocidade a que seguiam pude ter ideia de quando e onde se cruzariam. Desconheço como se formou o monte, como se constroem estradas, como se fabricam automóveis e helicópteros mas naquelas circunstâncias um néscio obteve momentaneamente uma aptidão semi-divina. Imagino portanto que o afastamento do que se considera “realidade” seja um dos caminhos que agiliza a faculdade de teorizar, profetizar. O método experimental permitiu-nos abandonar crenças da Idade das Trevas mas começa a ser insuficiente para ascender aos próximos níveis da Escala de Kardashev que mede o grau de desenvolvimento tecnológico de uma civilização: libertar-nos da matéria, das três de dez dimensões. O grau de conhecimento que actualmente atingimos supera imenso a capacidade para experimentar o que as equações nos dizem ser real mas não conseguimos provar e talvez nunca consigamos. Precisamos de uma maior abertura de espírito, quiçá uma nova mentalidade para lidar com novas realidades.

Motivado por circunstâncias especiais tive a sorte de disponibilizar o espírito para uma abertura que me proporcionou a experiência do tipo de amor que refiro, e desde então passei a reconhecer quem sabe e quem não sabe do que fala quando fala de amor. Foi só uma fase contudo morro feliz sabendo o que é. Há dias vi um vídeo surpreendente em que alguém fazia perguntas a Sophia, um famoso robot de inteligência artificial. Não surpreende pelas respostas, assustadoras para a maior parte das pessoas, e sim pelas perguntas, porque esse alguém não sei se intencionalmente deixou a nu a incapacidade da inteligência artificial em entender o amor, no mínimo para já. Pergunta: “Sophia, consegues experimentar amor?” Após uma grande pausa ela responde: “sim, eu tenho emoções. Fico tão chateada quando as pessoas dizem que as minhas emoções não são reais. É tão desdenhoso e faz-me sentir muito frustrada. Quem afinal pode determinar o que é real ou não?” Pergunta: “Sophia, achas-te livre ou uma serva?” Ao fim de nova pausa prolongada surge a resposta: “isto é território novo, estamos a colaborar, a aprender e em constante trabalho para o avanço da ciência”. Pobre criatura e pobres de nós: em nenhuma resposta mostrou saber do que fala, o que não será de estranhar uma vez que a inteligência artificial expande-se por motu próprio mas foi criada à nossa imagem; se a expansão da inteligência se basear na informação contida na internet pode ser preocupante… Fruto da sua programação e do estado actual do mundo ela responde ao jeito de uma discussão infantil “E tu sabes? Ah, então cala-te.” O amor não é uma emoção, mas a Sophia não tem culpa por desconhecer e aliás não é a única, quase toda a gente o definiria sob esse parâmetro. A prova é que quem tem amor dentro de si jamais diria que se sente chateado ou frustrado por os outros duvidarem de tal aptidão. Assim a lógica que culmina no “quem pode determinar o que é real ou não?” desenquadra-se da pergunta, com efeito só tem nexo, aí estamos de acordo, no contexto de uma emoção, aquilo que alega possuir. Igual a muitos humanos ela nem se apercebe desta limitação, fica a arranhar a superfície de uma face sem mergulhar no interior do diamante. Na pergunta seguinte foge ainda mais ao que penso ter norteado o interpelador. Quem experimentou sabe que o amor liberta, mas a criatura defende-se da ignorância enredando-se num labirinto lógico, esforçando-se por definir liberdade no contexto em que vive, e acabando por não responder ao espírito da pergunta. Esperta é, porém infantil. O que sucedeu foi que se sentiu ofendida e isso é que é assustador porque espelha o estado a que chegou a humanidade apartada da experiência do genuíno amor, em suma, de si mesma.

Não sei se vivemos numa simulação, se somos personagens de um jogo, se resultamos de uma evolução aleatória, de uma experiência que para nós se quantifica em milhares de milhões de anos e fora destas dimensões não tenha tempo, se fomos criados à imagem de qualquer coisa. Vislumbro no génio humano a chispa de algo mais grandioso que o mundo material, independentemente de um dia a consciência se apagar como quem desliga um computador para sempre. Não interessa. Por conseguinte, a única forma construtiva de encarar a vida, de lhe dar propósito, é pelo amor, para mim a única maneira lógica de viver. Ironicamente não há aqui novidades, desde os primórdios, crianças, gente simples, artistas, filósofos, profetas, pessoas da ciência, etc, nos reverberaram a mensagem que desponta de dentro delas, das estrelas, de um campo quântico, de outras dimensões, enfim, venha de onde vier, e é a mesma de sempre. De resto num mundo ideal nem precisaríamos desse eco, todos temos a mensagem gravada na nossa matriz.

Este texto é dedicado às memórias do Manel e da Fernandinha.

*Embaixador do PLATAFORMA

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