Desenvolvimento chinês nas últimas décadas resultou em parte da capacidade de controlar uma natalidade que era explosiva, mas agora nem o fim da política de filho único convence os casais a ter famílias maiores. Índia, com mais jovens, está em condições de mostrar um maior dinamismo económico.
O facto de a Índia ultrapassar a China como país mais populoso do mundo, por si só, não altera a balança de poder face à China nem as respetivas posições nos rankings do poder e do desenvolvimento mundiais. Mas é relevante, e a Índia decerto aproveitará quer como argumento suplementar na sua candidatura a membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, quer para reivindicar ser não só “a maior democracia do mundo” mas também a responsável pelo facto de o país mais populoso ser agora uma democracia! E isso além do enorme potencial conferido por uma população jovem”, afirma Luís Tomé, professor catedrático de Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Lisboa e um grande conhecedor das dinâmicas dos dois gigantes asiáticos. Segundo as previsões das Nações Unidas, a China deixará este ano de ser o país com mais gente, posição que passará a ser ocupada pela Índia. No final de 2022 ambos os países tinham 1430 milhões de habitantes (dados da Economist Inteligente Unit, mas com certa margem de erro).
Existe desde meados do século XX uma competição simbólica entre a Índia e a China, nomeadamente sobre os méritos relativos das formas de governação escolhidas por um e outro. Desde o momento da sua independência, em 1947, pondo fim à colonização britânica, a Índia tem sido fiel à matriz democrática desejada por Jawaharlal Nehru e o Mahatma Gandhi, enquanto a China, proclamada República Popular em 1949 por Mao Tsé-tung, continua a ser governada pelo Partido Comunista. Depois das reformas económicas adotadas no final da década de 70 por Deng Xiaoping, o ritmo de desenvolvimento chinês explodiu e hoje o PIB é cerca de seis vezes superior ao da Índia, o que se reflete bem na riqueza relativa dos habitantes de cada uma. Mas desde 2021 a taxa de crescimento económico da Índia é superior à da China, e as previsões para os anos seguintes (em 2023 é de 5,1% contra 4,7%) confirmam essa tendência, o que leva os dirigentes indianos a confiar que terem uma população maior, e sobretudo bem mais jovem, acabará por atenuar o fosso com o vizinho.
Existem, porém, limites óbvios a um excesso de otimismo por parte da Índia, como acrescenta Luís Tomé: “No entanto, o crescimento demográfico de uma população já tão vasta aumenta ainda mais a pressão sobre os recursos – sobretudo água, alimentos e energia – e tende a agravar os altíssimos índices de poluição, urbanização e migração interna, podendo transformar-se numa maldição se se mantiverem as atuais elevadas taxas de pobreza e de desemprego entre jovens e mulheres e as tensões entre diferentes comunidades étnicas e religiosas.”
A última referência do académico chama a atenção para uma das grandes diferenças entre a Índia e a China – a diversidade. Enquanto os 1430 milhões de indianos formam um mosaico complexo, em que se cruzam e sobrepõem falantes de hindi, bengali, tâmil, marata, penjabi, etc., com crentes do hinduísmo, do islão, do cristianismo, etc., mais de 90% dos 1430 milhões de chineses pertencem à etnia han. Uma das explicações clássicas para a resiliência da democracia na Índia é, aliás, ser a única forma de governo capaz de suportar a tensão gerada pela competição entre as comunidades.
Para Shiv Kumar Singh, professor de Estudos Indianos na Universidade de Lisboa e autor do Dicionário Hindi-Português-Hindi, os números podem e devem ser uma mais-valia: “A população indiana (prevê-se ultrapassar 1400 milhões em 2023, conforme as Nações Unidas) poderá ser uma grande vantagem para a República da Índia, porque entre 2020 e 2050 a idade média dos trabalhadores indianos será de 30 anos, enquanto nos países desenvolvidos a tendência é para o lado do envelhecimento. Conforme a CII – Confederação da Indústria Indiana, em 2023 a população trabalhadora indiana será quase de mil milhões (quase 24,3% da população trabalhadora global) e este número não é apenas para trabalhar e servir para a indústria global, mas também uma forte classe média para o consumo interno. Se o país conseguir arranjar um emprego a cada pessoa que já se encontra na idade de trabalhar até 2030, então o PIB indiano chegará a 9 biliões de dólares (ultrapassou os 3 biliões em 2021, conforme o Banco Mundial) e poderá chegar a 40 biliões até 2047.” Claro que “isto exigirá um investimento constante na formação e na melhoria não só no ensino superior, mas também na pesquisa e desenvolvimento, se não este número poderá ser catastrófico também”, sublinha o professor, nascido no Uttar Pradesh, o maior dos Estados da Índia, com 241 milhões de habitantes (se fosse um país, seria o quinto mais populoso).
Do ponto de vista chinês, esta ultrapassagem em termos de população não tem de ser uma desvantagem, como nota Wang Suoying, investigadora do Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa: “Quanto maior população melhor? Nem sempre. Em 1957, Mao Tsé-tung disse: “A China tem muita gente, o que é bom mas também é mau. A vantagem da China é ter muita gente e a desvantagem da China é também ter muita gente.” Entendemos que uma grande população representa, por um lado, uma poderosa força produtiva e, por outro, uma grande procura de comida, de vestir, de alojamento, de transporte, de emprego, de educação, de saúde, de segurança…, pelo que a reprodução do ser humano tem de acompanhar a produção de artigos para o seu consumo. Após 1949, os chineses passaram pelos períodos de explosão demográfica e de um filho por casal, incentivados agora a ter mais filhos, tal como Mao disse: “Em suma, o ser humano deve controlar-se, podendo às vezes crescer um pouco, ou fazer uma pausa, ou diminuir um pouco, a avançar em ondas e realizar o planeamento familiar.” Os chineses orgulham-se por serem o país mais populoso do mundo, mas ainda mais pela transformação atual de um país populoso em potência económica, podendo dar maior contribuição ao mundo. Na altura, Mao disse:”Boa produção, boa vida, bom cuidado com as crianças, este é o nosso slogan.”
O fim da política de filho único (que durou de 1980 a 2016) não tem sido correspondido pelos casais chineses com o desejo de ter famílias maiores e o envelhecimento da população é já uma realidade, aproximando a China daquilo que são os desafios de grande parte do mundo desenvolvido, do Japão à Europa Ocidental, ou seja, a falta de mão de obra e a sustentabilidade da segurança social.
Mas Wang Suoying, que também é presidente da Associação Portuguesa dos Amigos da Cultura Chinesa, prefere enfatizar a parte positiva resultante da política de controlo demográfico: “Em 2021, na China, a esperança média de vida aumentou para 78,2 anos (84,11 anos na minha terra, Xangai); os principais indicadores de saúde estão na vanguarda dos países de renda média e alta; a taxa de mortalidade de bebés foi de 5 por mil (apenas 2,3 por mil em Xangai).”
Com a humanidade a ter ultrapassado os oito mil milhões em 2022, neste momento chineses e indianos somados são um terço da população mundial.