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“Escrever em português dá-me uma liberdade absoluta”

Catarina Brites SoaresCatarina Brites Soares

Vencedor do prémio mais importante em língua portuguesa. Professor, ensaísta e escritor. Brasileiro. 86 anos. A liberdade de criação é o legado que Silviano Santiago quer deixar. Foi essa liberdade que o júri do Prémio Camões valorizou no autor que questiona a linguagem e reflete a identidade. “Em Liberdade” foi considerada das obras que melhor representa a ficção, a poesia e a ensaística brasileiras do século XX. Os restantes galardões, como “Oceanos”, em 2015, e o “Jabuti”, após dois anos, reforçam a singularidade de um nome que contestou a perspetiva eurocêntrica sobre a literatura brasileira. Ao PLATAFORMA, Santiago diz ser decisivo para a língua portuguesa que o Brasil se torne um protagonista internacional. “É esse o caminho, que Bolsonaro negou totalmente”, afirma

-Disse que o prémio chegava “num momento difícil para o mundo e para o Brasil”. Que papel tem, pode ter a Literatura?

Silviano Santiago – Na altura da notícia, a emoção estava tolhida. Hoje já posso dizer que é plena. Tivemos uma bela vitória nas eleições. A Literatura não intervém, eventualmente ajuda a refletir. A minha escrita acompanha muito de perto o que acontece. O meu primeiro livro – “Em Liberdade” [ficção alter-biográfica de Graciliano Ramos quando é libertado] – foi publicado quando o Brasil saía de uma segunda ditadura, a militar de 64. O livro tinha como função ajudar a pensar sobre o que é a liberdade quando termina um regime autoritário.

-O Prémio Camões distingue autores “cuja obra contribua para a projeção e reconhecimento do património literário e cultural da língua”. Que legado gostava de deixar?

S.S. – O da liberdade de criação. Tom Stoppard, um grande dramaturgo inglês, perguntou-me uma vez como era escrever numa língua que poucos liam. Acabava de me dizer que quando escrevia tinha de fazer sacrifícios porque sabia que seria traduzido e que isso o constrangia. Escrever em português dá-me uma liberdade absoluta.

-Apesar de lhe reconhecer a qualidade, supõe dificuldades que outras não se enfrentam.

S.S. – Escrever em português aproxima-se de o fazer em alemão ou russo face à dificuldade de divulgação e necessidade de o texto ser traduzido porque não existem leitores suficientes. Mas a desvantagem neste ponto, torna-se vantagem noutro. O “Pirotécnico Zacarias”, de Murilo Rubião, começa assim: “Em verdade morri”. Em conversa com a tradutora que o traduziu para francês, perguntei-lhe porque não tinha traduzido a primeira frase. Respondeu-me que não faz sentido em francês por se tratar de uma narrativa inverosímil. E o que é um obstáculo no português pode tornar-se força, depende só da genialidade dos autores e, por sorte, os nossos autores têm sido bastante geniais. Clarice Linspector, por exemplo. Será que haveria alguém que escreveria como ela na época? Não, e a prova é que é uma autora póstuma. É moderna antes do seu tempo.

-Paloma Vidal, que o traduz, descreve-o como um autor que “se questiona sobre o que é fazer literatura, o que significa e as implicações políticas”. Revê-se?

S.S. – Não sou só eu, é a minha geração, que será conhecida por ter pensado a linguagem. Sendo posteriores a Freud, Nietzsche e Marx, já sabíamos que nenhuma linguagem é espontânea. O formalismo do poeta João Cabral de Melo Neto é sintomático. Se ler um autor do século XIX, os personagens têm a mesma linguagem. Na nossa geração cada personagem tem uma linguagem. Há um ‘eu’, que é matricial, e diversos ‘eus’, que são co-adjuvantes. É a lição de Fernando Pessoa, que não somos só um.

-Consideram-no também um pioneiro pelas análises transdisciplinares e pós-coloniais. Que viragem preconizou?

S.S. – Diz Focault que o importante a questionar sobre um livro é a relação entre obra e autor. Sempre tive uma preocupação muito grande em trabalhar esse enigma. Os meus dados biográficos são muito relevantes no meu percurso. Nos anos 60, ganhei uma bolsa do Governo francês e fui fazer o doutoramento na Sorbonne. Quando cheguei, apanhei um susto porque o que vi não coincidia com o que tinha lido sobre França. Era o auge da Guerra da Argélia. E descobri que existia um Brasil colónia. O livro mais completo sobre literatura brasileira, de Antônio Cândido, começa em 1800. Apercebi-me que não tinha lido nada do período colonial, ao mesmo tempo que a cidade explodia, que a polícia não me pedia documentação, mas pedia aos brasileiros mais escuros. Dei-me conta do colonialismo e que tinha de pensar sobre isso.

-E?

S.S. – Um dos meus interesses foi exactamente investigar o que foi escrito no Brasil no período colonial. “O entre-lugar do discurso latino-americano” é o resultado dessa imersão e das filosofias da diferença. Queria compreender a literatura de maneira diferente. A ideia não era desprezar a produção pós-século XVIII, mas – e aqui entra um conceito muito relevante no meu raciocínio – desenvolver a ideia de ‘suplemento’ em lugar da de ‘complemento’. Fui possivelmente um dos primeiros descolonialistas – eu não usava a palavra. Antevi uma produção. Cada livro meu é diferente porque é produto de uma investigação, reflexão. Sinto um mal e quando o sinto quero escarafunchar, adentrar e saber porque me sinto assim, que é esse esquisito que pode ser dito a terceiros, quartos, quintos, e que vai incomodar muitos. Fui muito enxovalhado pela crítica.

-Diz que “a noção de identidade num país complexo e rico como o Brasil, que experimentou violências como o genocídio indígena e a escravidão negra, precisa ser inclusiva, ou seja, é necessário trabalhar com formas de identidade e não com uma identidade única”. Esse percurso está a ser feito?

S.S. – Muito pouco a pouco, e o Governo Bolsonaro foi um grande atraso. O de Lula foi dos que mais procurou a inclusão. Nos anos 50, quando estudava na Universidade Federal de Minas Gerais, não havia um preto ou indígena, muito menos professores. O próprio ensino da Literatura partia do século XVIII, era este o marco que se considerava que a Literatura brasileira se tinha tornado brasileira. Não é um equívoco. É uma maneira de pensar o Brasil sob uma perspectiva eurocêntrica.

-Afirmou que Bolsonaro representava uma ameaça concreta pelas ligações com a extrema-direita. A ameaça deixa de existir agora que perdeu?

S.S. – Claro que não. Apenas se virou a chave democrática. Só tenho um receio: o do excesso de judicialização da política. Como é que esse parceiro necessário que é a Justiça pode intervir de maneira menos burocrática e mais equilibrada. Veja-se o exemplo norte-americano, as astúcias de Trump – malandragens, seria a palavra certa – são infindáveis. Nunca chegará a depor no Senado e nada o impede de ser candidato à presidência. Temo que esta mudança no Brasil seja muito hostilizada. Implicava com o voto útil. Agora entendo-o. Sem ele não havia possibilidade de enfrentar a onda bolsonarista.

-Lula não é visto como um político imaculado. Há quem considere que a escolha era entre o mal menor e que nenhum salvaria o Brasil.

S.S. – Moro [ex-ministro da Justiça] é outro exemplo flagrante da judicialização da política. Foi terrível para nós, para os europeus e em particular para os africanos porque encerrou todas as grandes empresas brasileiras que prestavam um serviço muito interessante ao Brasil, claro – porque nós não somos tão generosos, sabemos que há maldade neste neo-colonialismo brasileiro em África. Podemos discutir isso, mas o que aconteceu foi que todas as firmas tiveram de sair. Estive em Angola na época e quem as substituiu? Os chineses. O Moro entregou de graça os países lusófonos à China. Poderia ter dito à empresa Odebrecht para pagar não sei quantos milhões, julgar responsáveis, mas os operários não eram despedidos e as filiais não eram fechadas. O que me incomoda na judicialização da política não é que se encontrem os corruptos, mas que toda gente acabe afectada. Gostava que se reflectisse sobre a culpabilidade de Lula. Não estou a dizer que são isentos, mas há maneiras e maneiras de pagar. A justiça funciona manca.

-No discurso da vitória, Lula dizia: “Quero mais livros e menos armas, porque a cultura alimenta a alma.” Vai aceder ao repto?

S.S. – Sou Lulista desde sempre. Admiro muito como governou o país. Acredita na Cultura e, em primeiro lugar, na Educação. Fez programas extraordinários em favor dos menos favorecidos. A grande arma da Literatura é despertar. É um bom caminho se conseguir o que quer. A Cultura está parada, na Educação tivemos quatro ministros. Estamos num estado de calamidade. E retomando a questão da língua, é fundamental que o Brasil se torne um protagonista internacional. É esse o caminho, que Bolsonaro negou totalmente.

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