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O peso de Portugal

João MeloJoão Melo*

Por mais verdadeiras que sejam as impressões esforço-me por as filtrar pela razão.

Gente dada ao esoterismo tem-me dito que deveria confiar mais nelas mas acho que isso pode tornar-se numa armadilha tão enganadora quanto certos processos mentais. Prudência com ambos. Vivi, passei curtas ou largas temporadas em dezenas de países do mundo por trabalho ou lazer. Uma impressão recorrente ao viajar, comum a todas as circunstâncias ou motivos, é que após chegar a Portugal vou ganhando peso sobre os ombros que se acumula até atingir um valor que reconheço normal. Das primeiras vezes surpreendi-me pois significa que viria mais leve do ponto de partida, e apenas reparei na pressão pelo contraste, senão não daria conta. Deduzo que por muito que goste da pátria, de ser um bom sítio para viver, ela deve estar ligada a factores psicológicos que me inibem, entristecem, preocupam, seja o que for, ainda que a impressão surja quer eu interaja ou não com pessoas e situações, venha ou não ansioso por chegar; é uma fatalidade já assumida, ao fim de umas horas lá está, sinto a espinha dorsal mais dobrada.

Por acaso esta semana tomei conhecimento de um mapa gravitacional da Terra em 3D elaborado pela NASA, medido a partir de satélites no espaço; apresenta-se num gradiente de cores que vão do vermelho nas zonas de maior intensidade até ao azul nas de menor intensidade. A massa da Terra não é uniforme, logo a força da gravidade, proporcional à massa, é mais forte nas concentrações montanhosas, em especial nos Himalaias e Andes. Porém notei zonas a vermelho noutros locais onde à primeira vista não seria expectável, nomeadamente os Balcãs, Ucrânia, Médio Oriente e… Portugal. Aliás o nosso país consegue o feito de o seu mapa corresponder quase na totalidade a uma mancha rectangular vermelha, como se a fronteira física entre Portugal e Espanha tivesse sido traçada em função das diferentes forças gravitacionais… Mas não é tudo: esse rectângulo estende-se a norte até à Galiza, província da qual se diz sermos temperamental e culturalmente próximos, e para sul acaba na fronteira do Algarve, região que durante séculos se considerou um reino à parte. Globalmente a Espanha aparece a amarelo e o sul esverdeado. É por irmos de férias para o Algarve que nos sentimos mais leves? É por estarmos longe de casa em lazer que tradicionais destinos turísticos do mundo coincidem nesse mapa com uma cor azulada ou será só por calhar situarem-se em depressões geológicas? Curiosamente na semana passada falei da leveza que me transmitem as Caraíbas e agora vejo estarem nesse mapa numa zona de profundo azul. Se é do sítio ou das circunstâncias pessoais não sei, já trabalhei em alguns desses destinos e a sensação é semelhante, como por exemplo no Rio de Janeiro onde de cada vez que estive foi por um motivo diferente. Mesmo considerando eventuais factores psicológicos agregados de maneira positiva, a impressão manifesta-se bastante física. Entre os casos comprovados pela minha experiência saliento o Rio de Janeiro porque provoca um curioso conflito: sabemos que o perigo é latente, pode aparecer de súbito, mas ao mesmo tempo a leveza do corpo é indescritível, passeio pelas ruas a planar como se tivesse um hovercraft nos pés. Não estou a dizer que gosto ou desgosto, que não me toco pelas maravilhas ou desgraças da cidade, estou a dizer que a sensação mais marcante é sentir uma intrigante leveza corporal; e provavelmente só a notei no próprio momento por causa do choque com o modo de alerta em relação ao ambiente humano local, que se traduz por peso. No Rio sinto o corpo leve num ambiente pesado, contribuindo para me ocorrer que em Portugal sinto o corpo pesado num ambiente leve.

É natural não estar tão atento no meio autóctone, posso passar uma hora numa esplanada sem perder um minuto a reparar nos acontecimentos ao redor enquanto no estrangeiro um simples minuto pode ser motivo de horas de análise. Não pretendo encontrar explicações ridículas à luz da ciência mas também não posso desprezar uma impressão que sucedeu encaixar numa observação científica. O que quero dizer é que bem esmiuçada a impressão me parece essencialmente física. Se de facto me sentiria melhor a fazer a vida num local com menos força gravitacional é outra conversa, há dezenas de condicionantes que se misturam deturpando a impressão per si, só pretendi isolá-la dos restantes factores na medida do possível. Quer a NASA o confirme ou não, Portugal pesa-me no corpo.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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