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Ilha de paz

João MeloJoão Melo*

Em conversa com uma amiga cabo-verdiana em Portugal ela explicava-me o prazer que tinha em ver a televisão do seu país, mesmo que fossem “programas muito maus”.

Eu entendo-a, nas minhas temporadas em Macau entre jet lags intermináveis, dei comigo a ver o Preço Certo à meia-noite e meia na TDM… Sempre que estamos longe de casa é natural a queda para o kitsch, um exagero sentimental que nos liga instantaneamente às nossas culturas, e este factor explica, por exemplo, o sucesso da música pimba em comunidades portuguesas apartadas de contacto com o país.

Viajando e sobretudo mantendo-me no estrangeiro por muito tempo acabo por procurar nos destinos a essência da alma local, fora isso o mundo é uma construção racional mais ou menos igual em todo o lado. São as especificidades regionais que me atraem como água fresca para matar a sede de humanidade, dos valores mais contrastantes ou dos que nos unem. Ambos contribuem para eu próprio me conhecer melhor. Os valores que nos unem accionam o botão emocional, os que nos separam activam o pensamento crítico.

Por isso acho grave a censura feita aos canais russos no espaço europeu; tanto do lado da ditadura como do da democracia os cidadãos são tratados como um rebanho de atrasados mentais, apenas obedecemos, alguém decide por nós o que é melhor para nós. Enfim já nada me surpreende, o pensamento crítico há muito que desapareceu das sociedades, na verdade os líderes devem ter razão, somos realmente atrasados mentais. Propaganda é uma narrativa destinada a lavar o cérebro, a tornar-nos robots aprisionados num corpo; divulgação é um acto de sedução, e se for uma mensagem de amor, liberta-nos. Porque não percebemos a diferença entre propaganda e divulgação, opressão e liberdade, não nos queixemos no futuro quando descobrirmos para onde isso nos levou.

Gosto de música indiana. Há quase duas décadas tropecei em Portugal num programa de rádio de música indiana aos domingos, na rádio… Orbital. Sempre que tenho oportunidade escuto-o, passou a fazer parte de um ritual. É um programa tecnologicamente anacrónico feito por um homem sozinho, um indiano que passa desde temas antigos até ao mainstream de Bollywood. Tem aquele discurso à antiga portuguesa, respeitoso, misturado com a doçura indiana, usando termos que hoje soam ridículos à maioria. Parece agradar à audiência, eu ligo-me pela humanidade e simplicidade que emana. Ontem na “rubrica” dos aniversários (afinal é só um momento em que diz umas coisas) referiu “o pequeno Tomás, o orgulho da família, que conquiste sucessos atrás de sucessos”, e leu a mensagem de Sunita que mora na Portela e desejava um feliz aniversário ao seu “querido paizinho”; depois desejou ele ao senhor que vivesse milhares de anos já que “cada ano de vida corresponde a 10 mil anos”… Uma delícia. Ia no carro e fui toda a viagem a rir com o “querido paizinho”. Às vezes queda-se em lengalengas numa das línguas indianas que embala os ouvidos e onde de repente ressaltam palavras num português perfeito, do género ke sarvottam utpaad sarvottam gunavatta aur sarvottam Póvoa de Sto Adrião mooly par upalabdh hain vah sthaan pratishthit mahoday Almeida ka kiraana stor hai… Soma-me novo sorriso aos já provocados pelo “querido paizinho” e pelo “pequeno Tomás, o orgulho da família” que fazem mais pela minha felicidade espiritual que qualquer culto de qualquer religião.

Ao longo do tempo procurei informação na net sobre o programa e a pessoa que o faz, inacreditavelmente não há nada, apenas uma publicação de 2006 num blog de um Constantino Xavier; porque o texto está tão bem escrito e reflecte na perfeição o que é e o que representa o programa, tomei a liberdade de o reproduzir na íntegra.

“Ainda nem sabia eu ligar o rádio da cozinha, porque não chegava ao botão respectivo, e já os sons indianos da Rádio Orbital me acompanhavam todos os Domingos de manhã. E continua. O programa “Swagatam” é emitido em 101.9 FM, todos os Domingos de manhã, entre as 10:00 e às 14:00, procurando “divulgar a música e cultura indiana”, segundo a voz do amável locutor, que parece não ter mudado em vinte anos.

“Swagatam” (que significa “bem-vindo” em hindi) é uma ilha de paz na rádio portuguesa. Especialmente por emitir num espaço como o da Rádio Orbital, conhecida pelo seu carácter suburbano e techno reles. Assim, o programa aparece tão rapidamente como desaparece. Num minuto ainda se ouvem as batidas e os zumbidos esquizofrénicos do Crazy Frog, para, subitamente, nos envolverem as equilibradas e suaves melodias e vozes indostânicas.

Pessoalmente, tenho mais um contraste gravado na memória. Os Domingos de manhã eram dias em que a família acordava em conjunto, sem a correria dos dias da semana. Éramos cinco. Enquanto a minha mãe fazia umas apas à moda goesa que nós pouco depois deglutíamos com manteiga e açúcar, o meu pai fazia esforços para nos retirar da cama e nos vestirmos para a missa. Todo esse processo, incluindo os quinze minutos de viagem de carro para a Basílica de Mafra, pelas desertas estradas bucólicas e saloias, fazia-se ao som de “Swagatam”, como que as melodias orientais procurando dar-nos algum norte histórico, alguma razão existencial.

O programa é bilingue e cativa portanto gerações e públicos diferentes, dos mais velhos indianos que vivem enclausurados nas suas “Little Indias” periféricas sem falar mais do que dez palavras em português, aos mais novos indianos, que talvez ainda vão a conduzir, de volta de uma noitada em Lisboa nas discotecas da moda, acompanhados pela loura namorada portuguesa.

Mas a audiência é internacional também, porque se pode ouvir o programa em directo no site da Orbital. “Temos ouvintes por todo o mundo, nos Estados Unidos, na Inglaterra, em Angola, em Moçambique, em França etc. E recebemos agora um e-mail da Austrália do x, que nos diz que é nascido na Beira, mas que quer dedicar a música y a uma amiga em Lisboa”. É assim, tão fácil assim, que pela voz de um locutor num estúdio qualquer num subúrbio qualquer, se galgam fronteiras e espaços e ideias.

Mas o que mais interessa é que no “Swagatam” se fundem não só sons, mas ideias e culturas também, de forma positiva. Bastante ao contrário da RDP África, de que sou um ouvinte regular e de que gosto muito, mas que, pese a sua natureza pública, tende a cair muitas vezes na ratoeira da auto-marginalização e da sectarização cultural. “Angola, chutá bola, vamos prá vitória!”.

O melhor do “Swagatam” são os anúncios, lidos numa voz melodiosa pelo próprio locutor ou por uma assistente feminina. Um estilo radiofónico verdadeiramente arcaico, é certo, mas bastante atractivo, pessoal e eventualmente com bastante sucesso também entre a audiência-alvo. “Venha ao estabelecimento x, em Santo António dos Cavaleiros. Grande gama de produtos indianos, masala, gelados indianos, especiarias diversas. Encontra tudo à sua disposição. E agora às Segundas-feiras, venha encontrar legumes e hortaliças fresquíssimas vindas directamente da Índia só para si.” E segue-se o endereço e o telefone.

Há ainda os engraçados concursos radiofónicos (patrocinadas, claro, pela Dan Cake e o seu magnata dono indiano), e pontuais chamadas dos ouvintes. Lembro-me que os olhos do meu pai brilhavam sempre que, talvez uma vez ao mês, eles punham uma música goesa, ou talvez marata, e sempre que algum goês ligava para lá, e sempre que o locutor falava umas palavras em concani… ou marata.

“As boas acções não carecem justificação, mas as más não passarão incólumes por Deus, que nos prestará conta por elas por muito muito tempo”, avisa o locutor, no seu “pensamento da semana”. Repete numa língua vernacular indiana. Segue-se outra secção, das felicitações. Não antes de o locutor passar um desmentido.

No programa anterior alguém “fez uso da nossa boa vontade passando uma mensagem de noivado falsa, sob identidade falsa”, afirma, e lembra que “nos quase 20 anos, milhares de dedicatórias com felicitações para noivados, aniversários, etc. sempre grátis, num serviço à comunidade no seu todo universal, nunca isto aconteceu”.

“Não queremos pôr fim a este serviço. Façam uso positivo dele. Não o usem para fins maléficos, atentando ao bom nome de famílias honestas”, apela e explica que “passámos este desmentido a pedido do pai da jovem que manifestou indignação perante esta falsa e ignóbil notícia do noivado”.

E voltam os sons indianos, antigos e modernos, do Norte e do Sul, preenchendo e ocupando o meu quarto. O meu pai chama-me. Desligo a rádio. Vou para a cozinha. Já cheira a apas.”

Nos comentários fiquei a saber que o locutor se chama Champaklal Devchande, originário de Moçambique, e a voz feminina, a assistente que se ouvia durante anos era a sua filha, Babita. Tem sido uma luta manter o programa no ar em busca de patrocínios e aparentemente sobrevive há mais de 30 anos! Tenta dinamizar várias actividades comunitárias, e fá-lo de forma altruísta, pouco mais recebendo em troca do que algum agradecimento de quem o ouve. Embora seja um programa de autor, em quase duas décadas nunca ouvi o locutor falar de si, está absolutamente centrado num serviço. E que serviço é esse? Como tão bem definiu o Constantino, é um serviço de paz. No fundo este senhor é um verdadeiro artista, um anjo focado em transmitir a mensagem, não focado no mensageiro. Comecei a ouvir por causa do exotismo sonoro, mantive-me pela abnegada construção de pontes entre humanos, hoje ouço por ser uma brisa de liberdade, uma ilha de paz no espectro mediático. Recentemente passei a temer um dia ligar o rádio e ele já lá não estar, que poucos se apercebam da sua importância genuinamente merecedora de uma condecoração da República Portuguesa. Que viva centenas de milhares de anos é o meu desejo!

Swagatam, Rádio Orbital 101.9, domingos das 10h às 14h, hora portuguesa.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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