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Dá que pensar…

João MeloJoão Melo*

Escrevo este texto em cima do joelho após se conhecerem os resultados eleitorais.

Seria incapaz de o fazer se na semana passada não tivesse desenvolvido linhas de força que em relação ao conteúdo se revelaram aproximadas, mas tendo noção de que na forma as coisas podem diferir, afinal resultam de ideias, não de uma consulta a uma bola de cristal. Desde o tempo em que frequentava as aulas de sociologia política do Miguel Esteves Cardoso no ISCTE que sei que a maioria do tecido social português é de esquerda e não me parece que tenha mudado muito ao longo dos anos. O zénite dessa teoria provou-se na radicalização ideológica das eleições presidenciais de 1986 quando toda a direita se revia em Freitas do Amaral e a esquerda que não se revia completamente em Mário Soares votou em peso nele, tendo ganho por uma unha negra.

Sobre este acto eleitoral em primeiro lugar falhei num aspecto fundamental: penso que a abstenção não contribuiu para os resultados. Depois obviamente não esperava uma maioria absoluta do PS, no entanto foi um erro de cálculo um pouco estúpido uma vez que previ o completo esvaziamento dos partidos à sua esquerda, e tendo em conta o perfil sociológico do eleitorado bem como a evidente divisão à direita, algo próximo da maioria deveria suceder. A minha imprecisão relativamente ao resultado do PS deve-se à enorme incapacidade do PSD de se apresentar como alternativa, o que sinceramente suspeitava mas não imaginei que fosse tão grave. No seu melhor Costa é um líder inteligente, maleável e cosmopolita, tudo aquilo que Rio não aparenta ser. Noites de facas longas se avizinham no PSD até porque como disse na passada semana, o jogo joga-se ao centro, e mesmo descontando o esvaziamento da esquerda creio ter havido transferência de votos do PSD para o PS, assim não foi só uma derrota, foi uma cabazada humilhante. Se juntarmos o perigo que advém das mesmas áreas políticas serem autofágicas, os principais rivais nas campanhas são os do seu lado do espectro, então o crescimento desses começa a fazer tremer as estruturas do PSD, está sob fogo dos dois lados. As características que apontei a Costa configuram novas matizes a ter em conta na pintura do país e exibem uma divisão mais profunda ao nível de mentalidades, entre novos e velhos, urbanos e não urbanos de todo o espectro político, isto porque a direita normalmente conotada com a conservação também encontrou na Iniciativa Liberal um modelo jovem e fresco. Já agora, o seu resultado encontra-se exactamente dentro dos parâmetros que cogitei.

Fiquei bastante surpreendido com a eleição de um deputado do Livre, não esperava de todo e neste contexto eleitoral parece-me um feito verdadeiramente notável. O PCP continua a perder, a questão seria saber quanto. Já o Bloco de Esquerda era evidente que iria pagar as favas do chumbo do orçamento. Em conversa com um amigo dei o exemplo do PRD que depois do erro táctico de chumbar o orçamento de um governo minoritário que apoiava, praticamente desapareceu na eleição seguinte que daria origem à primeira maioria absoluta de Cavaco Silva. Embora saiba que o PCP se vai esvaindo de eleição em eleição desconheço a quantidade, contudo era mais ou menos certo para mim que o BE lhe ficaria atrás. Como supus o PAN lá aguentou a deputada e o CDS desapareceu do parlamento; racionalmente ainda equacionei a hipótese de manter um deputado, a minha convicção era de que nem chegaria a um.

Quanto ao Chega foi uma meia surpresa. De facto aguardava que se tornasse na terceira força porém que tivesse mais deputados. A não alavancagem dos resultados do Chega mostra que no fundo as pessoas no momento de votar ainda são de modo geral sensatas, escolhem um balanço entre o que mais lhes convém e o que acham convir ao colectivo. Previamente ao debate que se seguirá nos próximos dias sobre a transferência de votos, penso que a Iniciativa Liberal é responsável pelo relativamente decepcionante crescimento do Chega. E não crescendo como o expectável em circunstâncias tão favoráveis indicia que o Chega pode estar próximo do pico de expressão eleitoral, ao contrário dos liberais que tendem a crescer. Significa portanto que o Chega ganhou um concorrente perigoso, diria mesmo um inimigo de estimação; alegadamente encontram-se na mesma área mas nem se podem ver.

Só uma pessoa me persuadiu a votar num partido, o Chega, foi uma empregada da estação de serviço onde costumo abastecer, deve ter uns quarenta anos. Fez ontem uma palestra que achei interessante sobre quando era pequena e lhe “diziam que o PS era o partido dos pobres e o PSD dos ricos. Salazar era do PSD. Não ria que fico triste. Não era? Então qual era o partido dele? (pega no telemóvel para consultar a net). Diziam que o Salazar castigava os bons mas é mentira, castigava os maus. O Ventura quer continuar o que fez o Salazar. Uma senhora professora cujo marido foi militar disse que já tinha ido votar no Chega; ai até me arrepiei, fiquei tão contente…” Nunca lhe disse em quem votava, aliás quase nem falei, só ouvi, e partiu do princípio que eu não votava no partido dela, concluindo que “não é por si nem por mim mas o seu voto no Chega é pelos nossos filhos e netos”. Vê-se que o partido a tocou emocionalmente e é natural que se sinta imbuída de razão, já os argumentos para me convencer achei-os no mínimo pueris. E na mesma medida em que tomou para si a importante tarefa de me explicar porque eu deveria votar no Chega, tomei consciência de que o voto dela é tão importante, vale tanto como o meu, o seu que me lê, ou o do presidente da República. Dá que pensar…

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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