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Somos todos belos

José Kaliengue*

Dou-me ao mundo todas as manhãs pela janela da minha cozinha. Não abro outra primeiro, prefiro esta porque é por ela que mais forte me entram os cantos dos pássaros. Para mim, são apenas pássaros, não lhes ligo aos nomes das espécies e subespécies em que os homens os subdividem, acho que eles também se estão nas tintas para isso. Aliás, nem querem saber se eu próprio não sou pássaro também, desde que lhes deixe no parapeito da varanda grãos moídos que lhes deem força para voar em liberdade.

E da janela da cozinha eu a vejo, linda como um diva de cinema, daquelas de que toda a gente conhecia os nomes. Ela na sua janela, na sua varanda a uns quarenta metros, confinada, não sei se confortável neste novo modo de existência. Não é como os pássaros.

Vejo-lhe os contornos, nos calções que Luanda corta sempre mais acima nos dias infindos de calor e na alça da blusa que cai despreocupada para o lado. Não lhe conheço o nome, nem a voz, nem os olhos, nunca falamos… bem, agora falamos, sem nos ouvirmos, sem nos lermos as íris, quase quarenta metros é muito.

Eu sei ouvir o seu olá, de manhã, no fingimento de que não me vê. Nunca parou a olhar para o meu lado. Eu nunca lhe sorri, nunca lhe acenei. Mas a nossa indiferença mútua tem uma mensagem reciproca: tu és bela; tu és belo. Tu estás aí, a vida também.

Precisamos de manter esta comunicação, o gesto que abre a janela de um é alegria para o outro, afinal estamos aqui, a respirar, humanos, confinados, mas sabendo que há outra pessoa para sermos também. Toda a nossa humanidade está encerrada nos outros, por isso os vemos todos tão belos neste oceano de medo a que tentamos sobreviver. Temos medo de ter saudade das pessoas, temos medo de partir. Temos medo da morte.

Eu tinha as minhas exigências, os meus padrões de beleza, agora eles se reduzem a algo tão simples que apenas a infância sabe explicar, as pessoas fazem a beleza do mundo, não precisamos de ser próximos, precisamos que elas existam, para sermos belos também.

*Diretor do Jornal O País, em Angola

Nota de redação: Por engano, a crónica de hoje de José Kaliengue deveria ter sido publicada ontem e a de ontem de Ana Sofia Fonseca deveria ter sido publicada hoje. Pedimos desculpa aos autores e aos nossos leitores pelo lamentável lapso.

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