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Eu consigo respirar

Ana Sofia Fonseca*

A branca a comer a preta. Uma e outra vez. Sempre a branca a comer a preta. O António jogava damas. O dia inteiro, o tabuleiro no topo da mesa. Depois de almoço, as peças a moverem-se. Jogador solitário, senhor de brancas e de pretas. O digestivo, a batalha renhida e o jogo certo. Naquele tabuleiro, sempre a preta a comer a branca. O António jogava damas para a branca não comer a preta. Não era vingança, antes resistência, explicou-me. A vitória num tabuleiro pode ter um efeito contagiante. Aos poucos, mudar o jogo.

Conheci o António em Moçambique, já lá vai uma dezena de anos. O sorriso livre entrelaçado com a memória da palmatória e do apartheid. No dia da sua morte, não houve padre nem flores em coroa. Só a preta a comer a branca, a voz indignada de Nina Simone naquele seu Mississippi Goddam. Por estes dias, tenho-me lembrado do António, tardes coladas ao tabuleiro de damas. E da Nina Simone. O que cantaria ela agora? Nenhuma outra futilidade causou tanta injustiça quanto a cor da pele. Mais de 50 anos passados e o disco na mesma faixa. O assassinato de George Floyd a pôr tudo a preto e branco. Outra vez. Mais uma vez. Mineápolis Goddam.

No dia da sua morte, não houve padre nem flores em coroa. Só a preta a comer a branca, a voz indignada de Nina Simone naquele seu Mississippi Goddam

Racismo não é só crime, é rede que rouba a alma e a individualidade de cada um. Também não é só ignorância. É isso tudo, mais um punhado de maus fígados, com duas pitadas de cobardia. Não consigo respirar, disse George antes de morrer. Tinha 46 anos. Morreu debaixo do joelho de um polícia. Um pescoço debaixo de um joelho. Uns homens uns séculos debaixo de outros. O Washington Post reconstituiu o crime, com base em imagens de videovigilância, vídeos amadores e comunicações dos serviços de emergência. Está lá tudo, as peças no tabuleiro. Oito minutos e 46 segundos intoleráveis. O vídeo deixou-me sem respirar. Mentira. Sem respirar, só George Floyd ficou. Não consigo respirar, suplicou. Mas não há humanidade que levante um joelho racista. O tabuleiro de António não chega. Somos todos peças deste jogo. A questão é o que vamos nós fazer. Nós os que conseguimos respirar.

*Jornalista

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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