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Uma China de cara lavada

Quem visitou Pequim na semana em que se realizou o Fórum de Cooperação China/África poderá ter pensado que as cinzentas imagens da cidade são pura manipulação. A concentração de partículas PM2.5 – principal indicador da qualidade do ar –, fixou-se quase nos 0 microgramas por metro cúbico.

A estadia de dezenas de líderes africanos coincidiu com valores notáveis no ambiente na capital. O encerramento temporário das fábricas nas proximidades de Pequim, uma das cidades mais poluídas do mundo, fez com que a concentração de partículas do principal indicador da qualidade do ar descesse para perto de 0 microgramas por metro cúbico.
Soldados dispostos nas ruas, entradas para o metro ou paragens de autocarro, asseguravam a ordem na capital, enquanto a polícia de trânsito, presente em todos os principais cruzamentos, garantia a passagem dos chefes de Estado ou de Governo africanos.
A imprensa estatal não destoou: em declarações à CGTN ou Xinhua, os líderes africanos enalteceram a cooperação de “benefício mútuo” com a China e garantiram que o investimento de Pequim não tem “condições políticas”, repetindo os chavões do Governo Central.
A imagem ilustra os esforços da China para reforçar o ‘soft power’ em África, à medida que adota uma política externa mais assertiva, que passa por uma maior participação na governação das questões globais e por promover o modelo político chinês como solução para o mundo emergente.
Quase meia centena de Institutos Confúcio, organismo patrocinado por Pequim para difundir a língua e cultura chinesas, abriram portas nos últimos anos em África. Milhões de lares no continente passaram a receber diariamente entretenimento e conteúdo noticioso chineses.
“Já temos 50 milhões de utilizadores em África”, revela à agência Lusa Lily Meng, vice-diretora-geral do departamento de média do grupo StarTimes, empresa de telecomunicações privada chinesa que apoiou, nos últimos 15 anos, dezenas de países africanos na transição de televisão analógica para digital, garantido o acesso a conteúdo audiovisual chinês.
Com sede nos subúrbios de Pequim, num complexo envidraçado composto por quatro prédios administrativos, um bloco de dormitórios e um pátio tradicional chinês, o grupo StarTimes compromete-se no seu portal oficial a “fazer com que todas as famílias africanas disfrutem de televisão digital por um custo acessível”.
Mas Meng admite que os objetivos do grupo passam também por “divulgar a cultura chinesa”, enquanto assegura um modelo de negócio sustentável. “Temos apoio político para transmitir conteúdo chinês em África, mas não somos uma empresa estatal”, clarifica.
A firma conta já com subsidiárias em 30 países africanos, incluindo Moçambique, o único país de língua oficial portuguesa onde está presente, numa ‘joint-venture’ com a Focus 21, empresa controlada pela família do ex-Presidente moçambicano Armando Guebuza. “Para trabalhar em África é preciso ter boas ligações”, admite Lily Meng.
Dani Madrid-Morales, um pós-doutorado pela City University, de Hong Kong, que fez pesquisa sobre a StarTimes, considera que as novelas, filmes ou documentários chineses transmitidos pelo grupo “têm uma enorme componente ideológica”.
“Os conteúdos selecionados mostram uma China urbana, próspera: uma China não controversa”, explica.
Pequim, que há muito se queixa que a imprensa ocidental domina o discurso global e alimenta preconceitos contra o país, investiu nos últimos anos milhares de milhões de dólares para convencer o mundo de que a China é um sucesso político e cultural.
Em 2011, a televisão estatal chinesa China Global Television Network (CGTN) abriu em Nairobi, Quénia, a sede regional em África, que emprega hoje cerca de 150 repórteres.
Este ano, a agência noticiosa oficial chinesa Xinhua iniciou a construção da primeira sede fora de Pequim, também na capital do Quénia: um edifício de 16 andares, que incluirá escritórios e alojamento para os funcionários.
Eric Olander, jornalista especializado nas relações entre China e África, radicado em Xangai, admite que os órgãos chineses estão a “gastar muito dinheiro” para chegar às audiências africanas, mas duvida que as notícias, música ou cinema produzidos no país asiático sejam apelativos para os africanos.
Será antes o desenvolvimento económico da China, registado nas últimas três décadas, o principal instrumento de ‘soft power’.
“A mensagem que a China tem, que é extremamente atraente, é que nos últimos 25 anos passou de um país mais pobre do que a maior parte de África para se tornar na segunda maior economia do mundo”, realça.
“No ocidente, por vezes, subestimamos o poder de uma estrada ou ponte. Mas o impacto que têm na vida das pessoas [em África] é enorme, e os africanos sabem que veio da China. E isso é muito poderoso.”
O termo ‘soft power’ foi usado pela primeira vez pelo académico norte-americano Joseph Nye, no início do anos 1990, e refere-se à importância da cultura, valores ou ideais na configuração das normas internacionais, em contraste com o ‘Hard Power’, que inclui a coerção através da força militar ou económica.
Em África, Pequim terá as condições favoráveis para promover o seu modelo de capitalismo autoritário, considera Eric Olander, fundador do portal The China Africa Project .
“Os africanos entendem que não pode haver direitos políticos e civis antes de terem direitos económicos e sociais”, nota. “E esse é precisamente o mantra chinês”.

João Pimenta 28.09.2018
Exclusivo Lusa/Plataforma Macau

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