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“A Grande Baía trará vantagens, mas também ameaças”

Catarina Brites Soares

O diretor da Macau Pass mostra-se preocupado com a integração sobretudo porque, afirma, será inevitável a entrada de empresas estatais no mercado que acabarão com as chances das locais. Joe Liu não quer protecionismos, só quer que o Governo intervenha e garanta que a competição será justa.

– Como responde às críticas da Autoridade Monetária de Macau (AMCM) sobre o serviço de MPay da Macau Pass?
Joe Liu – A AMCM tem todo o direito de averiguar o que se passou. Por causa deste incidente, vamos atualizar e melhorar os nossos serviços. É preciso lembrar que a utilização do MPay teve um aumento exponencial nos últimos tempos. Há uma pressão e procura acrescidas.

– Mas o que aconteceu concretamente?
J.L. – A capacidade do servidor foi excedida pelo número de transações que se fizeram em simultâneo. Decidimos lançar várias promoções ao mesmo tempo e o tráfego superou em muito o que esperávamos.

– Houve perdas e clientes afetados?
J.L. – Ninguém perdeu dinheiro. É como o trânsito em hora de ponta, ninguém fica sem o automóvel, apenas se anda mais devagar. Não somos só nós. Os maiores bancos em Macau – Banco da China e o ICBC – tiveram o mesmo problema. O Governo referiu-se a nós porque fomos pioneiros neste serviço, somos quem tem mais utilizadores e a maior rede em Macau, e portanto quando há um problema é mais visível.

– A AMCM exigiu também “o recrutamento imediato de uma terceira entidade para avaliar detalhadamente a rede e o sistema informático”. O que já foi feito?
J.L. – Já contratamos a PricewaterhouseCoopers [consultora], que nos vai dar uma opinião sobre o nosso trabalho e o que podemos melhorar.

– Em 2018, tinha cerca de 110 mil utilizadores do serviço MPay e oito mil terminais. Quantos são agora?
J.L. – Mais de 410 mil utilizadores e 17 mil terminais.

– Disse que quer tornar o MPay tão importante como o WeChat. Está no caminho?
J.L. – Estamos a fazer progressos. O WeChat tornou-se a primeira aplicação no ecrã do telemóvel de toda gente na China continental. É app que mais se abre diariamente para fazer o mais variado tipo de coisas: falar com amigos, fazer pagamentos, investir, comprar bilhetes de viagens, tudo. Concentraram numa única app tudo o que se pode fazer na internet. Macau está cada vez mais no encalço do desenvolvimento do Continente e é muito sustentado pela economia chinesa. O que podemos fazer é ter um género de cópia à medida de Macau. Antes o MPay limitava-se a ser um serviço que se podia usar para pagar numa loja. Hoje, não só recrutámos muito mais parceiros como vamos ao encontro do que Macau quer ser – uma cidade de entretenimento e lifestyle – por causa das ofertas e clientes que temos.

– Há riscos associados a este tipo de tecnologia e aplicações, como de segurança e privacidade. Que garantias dá a esse respeito?
J.L. – Macau, ao contrário de muitos outros países onde já trabalhei, tem de longe das leis mais restritas em termos de dados pessoais.

– Pode dar-me exemplos?
J.L. – Não somos autorizados a passar qualquer tipo de informação a ninguém, nem aos nossos parceiros. Se infringimos a lei, tiram-nos a licença. É um risco que ninguém de bom senso quer correr. A única coisa que posso fazer é promover serviços que podem interessar ao utilizador pela informação que a nossa empresa tem. Por exemplo, constatamos que o utilizador vai muito a Hong Kong porque compra muitos bilhetes de viagem. Na barra na qual aparecem as ofertas, podem surgir mais relacionadas com Hong Kong. Por outro lado, e no que respeita à segurança, somos monitorizados pela AMCM. Por exemplo, não podemos contratar um servidor de fora, porque se o local onde está sofre alguma catástrofe, como um terramoto, não podemos fazer nada. Toda a informação tem de estar em Macau e cumprindo os requisitos da AMCM. Todas as transações são encriptadas, quer implique uma pataca ou milhares. A segurança é exatamente a mesma.

– E no que respeita à partilha de informação com o Governo?
J.L. – Não o podemos fazer. Podem pedir-nos informação sobre os valores e montantes de transações relativos à empresa, mas não o podem fazer sobre o utilizador.

– A Macau Pass fornece vários serviços, incluindo públicos, como aconteceu recentemente com o cartão de consumo. Foi-vos atribuído sem concurso público. Como responde às dúvidas sobre a transparência?
J.L. – Os concursos públicos usam-se por norma quando se trata de projetos que vão gerar lucro. Não ganhámos nada. Na verdade, gastámos mais de 15 milhões de patacas. Foi por isso que o Governo não precisou de abrir concurso. Além disso, para este serviço em particular, não havia outras opções. Não há nenhuma empresa com uma rede de utilizadores e clientes tão grande como a nossa, e capaz de responder. Não tinham outra opção se não recorrer aos nossos serviços. É o programa mais caro que fiz. Encarámos isto como uma missão.

– O que o leva a aceitar um serviço que está a gerar prejuízo?
J.L. – Estamos a perder muito dinheiro, estamos a perder dinheiro a cada mês. Perante o pedido do novo Chefe do Executivo, honestamente, acha que poderia dizer que não? Se dissesse que não, haveria algumas chances para desenvolver os meus serviços nos próximos anos? Primeiramente, tenho de apoiar o Governo. Em segundo lugar, não posso não apoiar. Tenho interesses em Macau, e em muitos casos temos de trabalhar com o Governo.

– Por outras palavras, está disposto a perder agora porque sabe que depois vai ganhar?
J.L. – Não sinto que vou ganhar, mas pelo menos não fico do lado errado para o Governo. Quero que gostem de nós. Há muito mais coisas que quero fazer em Macau. O cartão de consumo é a prova da nossa capacidade. Trabalhamos em contrarrelógio, sete dias por semana, horas a fio, meses seguidos para meter isto de pé num prazo que ninguém seria capaz. Foi um feito e o Governo reconhece isso.

– Falou de planos para o futuro.
J.L. – A aposta agora será no sentido de levar o mercado local para fora. Nos últimos anos, temo-nos focado essencialmente em trazer tráfego e turistas de fora a Macau. Temos garantido que aqui podem usar todas as apps que usam na vida diária, como o Alipay e o WeChat. Macau deixou de ser, assim como Hong Kong, uma região que é olhada quase como um país diferente, onde os turistas do Continente vinham e sentiam que estavam noutro sítio. Com o crescimento de Macau e a integração na Grande Baía sinto que também temos de sair daqui, ou pelo menos, permitir aos utilizadores que o façam a partir dos nossos serviços.

– Pode ser mais claro?
J.L. – No fim do ano passado, tornamo-nos a primeira carteira eletrónica (e-wallet, em inglês) a ser usada no Continente. Também já temos a autorização de Hong Kong. O próximo passo é trabalhar com parceiros destes locais e ver como podemos expandir o uso do MPay. Não queremos competir com o WeChat, nem o podemos fazer. Vamos focar-nos na relação Macau-China, Macau-Hong Kong. Pode ser que, num futuro próximo, talvez já se possa usar o MPay nas principais fronteiras, hotéis e restaurantes.

– Sobre a Grande Baía, a maioria dos empresários tem um discurso otimista, muitas vezes fazendo eco dos slogans do Governo sobre as vantagens. Como encara a integração?
J.L. – Ao contrário da maioria que é pró Grande Baía e se limita a dizer slogans sobre de como o projeto é excelente, a meu ver é um pau de dois bicos. Obviamente que trará vantagens, mas também ameaças. Maior facilidade de circulação significa mais turismo, mas também mais negócios. Nos últimos anos, há cada vez mais empresas estatais no mercado de Macau e a expandirem-se. O crescimento de Macau está cada vez mais associado ao do Continente. Será difícil evitar que os principais negócios não sejam atribuídos a empresas estatais e que controlem cada vez mais o mercado de Macau. Em teoria, e mais uma vez, é uma coisa boa porque têm mais recursos, são do Governo portanto nunca abrirão falência e têm muito dinheiro para investir. Mas no respeita às empresas e mão-de-obra locais a conversa é outra. Nunca vamos poder competir com uma empresa estatal.

– Quer medidas que protejam as empresas locais, portanto?
J.L. – Proteger não será a palavra adequada. Quero que o Governo tenha uma postura equilibrada na forma como gere o mercado. Aplicar legislação que promova a competição justa. Por exemplo, se Macau quer que se continue a desenvolver o pagamento eletrónico, devia estabelecer standards. Se vê que as taxas são inferiores aos custos, obviamente que deveria tomar medidas.

– Que tipo de medidas?
J.L. – Aplicar legislação que promova a competição justa.

– Que impacto teve a situação pandémica na Macau Pass?
J.L. – No meu caso, não vai ter um grande impacto, acho que será sempre uma coisa temporária. E também acredito que, depois do vírus estar sanado, Macau continuará a ter um futuro brilhante de crescimento. Por isso, não creio que nos afetará muito. O que me preocupa foi o que referi antes: a Grande Baía e o crescimento de Macau estar cada vez mais sincronizado com o do Continente, significando isso um encorajamento às empresas do Continente a virem para Macau.

– E a situação que se vive em Hong Kong desde o último ano, de tumulto político e consequentemente económico, afetou-o?
J.L. – Na verdade não. Felizmente, Macau tem-se portado bem. Macau é o que é por causa da relação com a China continental. Nunca poderá ser uma economia autossustentável. As pessoas em Macau percebem a relação da região com o Continente. Por um lado, levar a sério os objetivos do Governo ao mesmo tempo que mantemos as nossas características enquanto região administrativa especial.

– Há pouco falava em prejuízo, mas no ano passado teve um lucro de 35,6 milhões de patacas, com um aumento de 74 por cento no valor das transações processadas por pagamento eletrónico.
J.L. – E esse lucro foi imediatamente investido na empresa. Em relação à Macau Pass, estamos numa situação de break-even. Sempre que fazemos lucro, a ideia é voltar investir. A minha fonte de rendimento e da minha família é de outros negócios, como imobiliário, transportes, fundos e investimentos. Eu, por exemplo, tenho outra empresa, a MOME.

– E previsões, já tem?
J.L. – Prevejo que continuemos a ser a maior rede em Macau e que os nossos produtos, como a Macau Pass e MPay, continuem a crescer. No longo prazo, temos de trabalhar mais de perto com o Governo no sentido do desenvolvimento saudável que é uma coisa que não vejo agora.

– Que opinião tem do novo Governo e Chefe do Executivo?
J.L. – Muito de executar e muito competente. O novo Chefe do Executivo vai fazer tudo para que as ligações de Macau com o Continente sejam cada vez mais fortes e concretizará com celeridade tudo o que o Governo central esperar de Macau.

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