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Aliança Turismo-Saúde para resistir à pandemia

Guilherme RegoGuilherme Rego

Uma aliança entre o Turismo e a Saúde dá os primeiros passos em Macau. O estudo, da autoria de Glenn McCartney, Carolina Ung e José Ferreira Pinto, da Universidade de Macau (UM), tem a missão de tornar a indústria turística resiliente a futuras pandemias, começando por estabelecer uma parceria com as farmácias comunitárias

“Não é uma aliança natural”, admite Glenn McCartney, professor assistente em Resorts Integrados e Gestão de Turismo na UM. Mas a pandemia da Covid-19, por diferir de outras doenças e envolver a saúde pública, exige “que todos façam parte da luta”, explica Carolina Ung, farmacêutica e professora assistente no Instituto de Ciências Médicas Chinesas da UM. A necessidade de repensar a indústria turística é evidenciada pelos dados registados nos últimos anos.

Em 2019, ano que antecede a pandemia, Macau recebeu cerca de 39,4 milhões de turistas. Já em contexto da Covid-19, nos dois anos seguintes (2020 e 2021), a cidade acolheu apenas 13,6 milhões de visitantes (aproximadamente 34,5 por cento do número registado em 2019), de acordo com a Direcção dos Serviços de Turismo (DST). Em 2021, gerou-se 86,8 mil milhões de patacas em receitas brutas de jogo, um aumento de 43,7 por cento face ao ano anterior.

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Porém, 2020 foi um ano para esquecer: as receitas caíram notavelmente (79,2 por cento), levando a que o setor do jogo tivesse um peso de 21,3 por cento no produto interno bruto (PIB) do Território – que contraiu 56,3 por cento. Em 2019, a indústria constituía mais de metade do PIB (51 por cento), revelando a sua importância na estrutura económica da cidade. “Desta vez estávamos desprevenidos”, reconhece Glenn, reforçando que a indústria do Turismo quer estar preparada para o que o futuro lhe reserva. “Nós percebemos que a pandemia é uma emergência sanitária, daí ser apropriado juntarmos forças e conduzir uma investigação interdisciplinar.

Glenn McCartney, professor assistente em Resorts Integrados e Gestão de Turismo na UM

Ainda por cima em Macau, que depende largamente do Turismo. A aviação, os hotéis, os cruzeiros, estas indústrias estão em comunicação permanente, mas não estávamos a olhar para outras disciplinas, como a da saúde”, sublinha.

UMA PROPOSTA ‘WIN-WIN’

Surge então o estudo “Living with Covid- 19 and Sustaining a Tourism Recovery— Adopting a Front-Line Collaborative Response between the Tourism Industry and Community Pharmacists” [Viver com a Covid-19 e manter a recuperação do Turismo – A adoção de uma colaboração na linha da frente entre a indústria do Turismo e os farmacêuticos locais]. Para averiguar a viabilidade do projeto, os autores entrevistaram farmacêuticos, empresários do setor turístico e outros profissionais, que responderam a questionários específicos. Foi depois desenvolvido um quadro conceptual baseado em “Quatro C’s”, ou seja, na comunicação, cooperação, coordenação e colaboração entre o setor farmacêutico e do Turismo.

“Com base nas nossas hipóteses, as respostas (…) confirmam a adequação deste quadro e a importância de uma colaboração interdisciplinar (…) para desenhar um caminho sustentável para a recuperação”, lê-se no estudo. Carolina explica que o primeiro contacto deu-se com as farmácias comunitárias porque ambos os setores “servem o mesmo tipo de cliente”. “Os turistas, quando vêm a Macau, não é apenas para hotéis ou casinos. Existe também uma procura por produtos farmacêuticos, porque aqui têm confiança na garantia de qualidade”, afirma.

“A evolução da pandemia e a atualização das restrições fronteiriças preocupa os visitantes. Se estes tiverem uma rede de segurança, entendemos que pode aumentar a confiança em viajar para a cidade”, assume. Por outro lado, evidencia a distribuição das farmácias comunitárias – densamente localizadas nas zonas turísticas -, concluindo que “já temos a infraestrutura” para fazer a integração dos dois setores.

Em 2020, Macau tinha 296 farmácias comunitárias, segundo o estudo. Aos olhos de Glenn, “os turistas escolhem os destinos com base no lazer. Normalmente não vêm a pensar: ‘E se eu fico doente?’. Mas, infelizmente, há sempre esse risco e muitas vezes o primeiro contacto que têm é com as farmácias locais”, atesta. Em várias zonas do mundo o fenómeno repete-se, constata Carolina.

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“Em Macau, sempre que se tem uma condição de saúde menos grave, é provável que se vá diretamente a uma farmácia, em vez de ir a um hospital. As farmácias têm profissionais altamente qualificados, mas muitas vezes pensam que somos mais orientados para o retalho. Por essa razão, acho importante encontrarmos oportunidades que auxiliem a reconstrução dessa imagem e que nos permitam desempenhar serviços para os quais temos as qualificações necessárias”, explica. Aponta também para o papel desempenhado pelas farmácias locais na prevenção pandémica, nomeadamente na distribuição de máscaras aos residentes.

“Todos os residentes têm direito a uma quota de máscaras e obtêm-nas nas farmácias através de um processo muito simples. Isso porque algumas das farmácias locais já têm um sistema informático partilhado com o Governo. O que as autoridades têm preparado para a população pode ser distribuído através das farmácias com um registo implementado. Outra coisa é o facto de as pessoas irem à farmácia para produtos contra a febre, entre outros, o que nos proporciona uma oportunidade para fazer uma certa vigilância a casos atípicos, aconselhar, e até reencaminhar o processo. Tudo o que apontei já é feito em Macau. Mas em outros sítios até fazem mais, como testes de ácido nucleico ou vacinação. Os encargos das farmácias variam pelo mundo, mas a sua importância é fulcral no controlo pandémico”, defende.

“Creio que o conceito subjacente ao que temos vindo a discutir até agora tem a ver com a ‘network’ humana. Usar os humanos como sensores para dar sentido ao que se está a passar com a comunidade”, refere José Pinto, atualmente a fazer doutoramento na UM. “A tecnologia é mais rápida e permite uma distribuição mais flexível da informação. Assim, existe uma compreensão destas redes de distribuição profissionais”, continua.

“Há aqui uma proposta ‘win-win’”, afirma Glenn. “As farmácias operam pontos de venda a retalho, e essa indústria foi severamente afetada pelo bloqueio e baixos números de visitas”. A trabalhar em conjunto com as partes interessadas, todos saem beneficiados”, acredita. Se por um lado a indústria turística não estava preparada, tendo também registado um decréscimo avassalador na taxa de ocupação hoteleira (de 92 por cento em 2019, desceu para 28,6 por cento em 2020, subindo para 50 por cento em 2021); a verdade é que os pontos de venda a retalho, como as farmácias, também foram vítimas da pandemia.

Carolina Ung, farmacêutica e professora assistente no Instituto de Ciências Médicas Chinesas da UM

De acordo com os números da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos (DSEC), o volume de negócios das farmácias desceu 24,2 pontos percentuais de 2019 para 2020. Em 2021, registou-se uma recuperação relativamente ao ano anterior (22,7 por cento até ao terceiro trimestre). Mas ainda falta muito para chegar aos valores de 2019, pois o crescimento teria de ser na ordem dos 41 por cento

CASO RARO

O Turismo e a Saúde começaram a desenvolver mecanismos de cooperação há largos anos. Conceitos como Turismo de Bem-Estar ou Turismo Médico já são conhecidos – este último até é um dos objetivos a concretizar pelo Governo local no Hospital das Ilhas, por exemplo. Mas Glenn faz questão de distinguir: “Essas duas práticas turísticas acontecem quando os visitantes se deslocam a uma cidade para um determinado tratamento. Não é isso que estamos a trabalhar”, esclarece. “Este caso é muito raro”, avança Carolina.

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“Sobretudo por ter de passar o conceito para a prática. Agora que estabelecemos um canal de comunicação entre os setores, podemos observar como esta pesquisa traz alterações à forma como oferecemos os nossos serviços”, salienta. No estudo, os profissionais do Turismo consideram que Macau se pode tornar, a curto prazo, num centro de vacinação; e que as farmácias deveriam ter uma aplicação digital com várias línguas e atualizações em tempo real, em partilha com a indústria turística, para que esta possa rapidamente direcionar os seus hóspedes para os locais corretos.

Porém, para que tudo funcione, debatese sobre quem deve liderar a iniciativa. E Glenn é categórico: “A DST assumiria esse papel de liderança”. Seria a figura de consolidação, uma autoridade para reunir ambas as partes”. Contudo, afasta processos burocráticos morosos, sublinhando que a colaboração precisa de dar “respostas altamente dinâmicas” ao quadro pandémico. O académico acredita que deve ser uma autoridade a liderar o processo porque as conclusões do estudo indicam que objetivos turísticos e farmacêuticos podem ser distintos.

As preocupações são mencionadas no estudo: um profissional da indústria turística comenta que a postura governamental de aversão ao risco de infeção por Covid-19 pode criar “conflito e fricção, porque a indústria do Turismo e as autoridades sanitárias podem desejar resultados diferentes”. Um dos farmacêuticos diz que “os negócios e as receitas são importantes, mas a perspetiva aqui é criar em conjunto um modelo de serviço que responda às preocupações e necessidades dos potenciais viajantes”. “Há falta de diálogo e de pensamento (…). Se o diálogo não era fácil quando os negócios estavam em alta, agora que os negócios estão em baixa, vão todos dizer que estão demasiado ocupados para parar e refletir”, aponta outro entrevistado do setor turístico.

Para resolver, José Pinto sublinha o mecanismo de cooperação apontado no estudo, que “é simplesmente o de fazer perguntas” e tentar responder. “Penso que o nosso foco deve ser questionar a nossa capacidade em criar vantagens e não tanto na procura de vantagens já estabelecidas”, acrescenta. Mesmo com barreiras evidentes, “não estamos a dar um grande salto”, reitera Glenn, dando o exemplo das infraestruturas hoteleiras onde se pode realizar testes à Covid-19. Segundo os Serviços de Saúde de Macau, há 11 espaços que oferecem o serviço, sendo estes o Grand Lisboa Palace, StarWorld Hotel, Wynn Macau, Broadway Hotel, Studio City, MGM Cotai, MGM Macau, Grand Lisboa, Wynn Palace, Venetian e Sands Macao.

José Pinto, atualmente a fazer doutoramento na Universidade de Macau.

“A indústria da hospitalidade já está a crescer em termos daquilo que faz”, aponta o académico. “Alguns dos hotéis são agora locais próprios para quarentena. A nossa indústria já entende a necessidade de absorver conhecimentos médicos, algo que a indústria farmacêutica pode fornecer”, enaltece. Carolina apoia: “A comunicação entre o Turismo e a Saúde está a acontecer, mas a um nível governamental. Como é que podemos alargar ou levar isso para o nível comunitário? Penso que este é o próximo passo, porque já foi provado, e já observámos [através do estudo] que a comunicação entre esses dois setores é importante”.

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José Pinto conclui: “Trata-se da nossa capacidade de fazer algo continuamente. Não tem a ver tanto com o plano, mas sim com o planeamento. Não é uma colaboração, mas sim ir colaborando. E, portanto, há três palavras-chave que realmente criam esta dinâmica: formalizar, envolver e avaliar.

E esses três conceitos permitem que daqui a dois anos olhemos para trás e digamos: ‘Bem, como é que estamos a colaborar nesta fase? Quais eram os mecanismos? Como é que o fizemos? Como podemos fazer melhor na fase seguinte?’”. Glenn assevera que a cooperação “não serve apenas para reagir rapidamente à pandemia”. Segundo o académico, “é um planeamento a longo termo e vai ser imbutido na forma de pensar sobre o futuro da indústria do Turismo de Macau”.

Enfatiza também que o setor tem respondido a crises através dos seus mecanismos de defesa. “Vimos como se comportou com o terrorismo. Ficámos mais vigilantes com a aviação, por exemplo, e temos subido vários níveis desde então. Mesmo com os sistemas meteorológicos temos dado respostas. A pandemia tem sido uma crise e nós oferecemos um caminho a seguir. Acreditamos que a partir de agora faz parte do sistema turístico e é uma maneira de lidar com as emergências de saúde pública no futuro”, aponta. “Quando olhamos para a literatura médica, vemos vários avisos sobre novas variantes. Já tínhamos ouvido sobre a ébola e a gripe das aves. Tivemos sempre de responder”, afirma.

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