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O plano é abrir em 2023, mas pouco se sabe sobre o novo hospital do Cotai

Catarina Domingues

Quanto vai custar o novo hospital? Confirma-se o modelo público-privado? Quem vai formar o corpo clínico? O Complexo de Cuidados de Saúde das Ilhas, anunciado há mais de dez anos, deverá entrar em funcionamento em 2023, segundo o plano quinquenal para Macau. Analistas lamentam falta de transparência e admitem que a pandemia possa motivar novos atrasos.

A seleção do terreno, numa das extremidades do Cotai, para a construção do novo hospital público em Macau não agradou desde logo a Agnes Lam. Corria 2009 e esta professora universitária, a concorrer pela primeira vez a um assento na Assembleia Legislativa (AL), aproveitava o momento eleitoral para se opor publicamente ao projeto. “Precisavam de aterrar o lago que aí existia”, recorda agora ao PLATAFORMA a então candidata, que passou numa das ações de campanha pelo Ieng San Wu – Lago Espelho da Montanha, é assim a tradução em português.

Agnes Lam, professora universitária e ex-deputada da Assembleia Legislativa de Macau.

Kwan Tsui Hang contestou, meses depois, a “decisão abrupta” das autoridades. “Não se compreende porque é que a escolha do local para a construção do hospital recaiu sobre o único lago natural de Macau”, questionou numa interpelação escrita a ex-deputada dos Operários. Au Kam San, também à época membro do órgão legislativo, lembrou os “muitos terrenos desaproveitados” nas proximidades, deixando uma crítica à incapacidade das autoridades de confiscar terra aos especuladores, como relatou na altura o jornal de Hong Kong South China Morning Post.

Agnes Lam: Uma vez que consta do plano quinquenal, terá de ser feito. Esse é igualmente o estilo no continente chinês, tudo o que vem no documento deverá acontecer

Mas nada fez recuar o Palácio da Praia Grande. Justificou assim o Executivo: o lago debate-se com “elevada concentração” de poluentes e a área em causa é “tranquila, bem servida de transportes e afastada das fontes de poluição e de produtos perigosos”.

Aterrou-se, então, o Espelho da Montanha. E entre esse primeiro momento político da aspirante a membro da AL e os dias de hoje passaram-se 12 anos. Agnes Lam não só perdeu a batalha “pela proteção ambiental”, mas também a oportunidade de se estrear nesse ano no palco político local (acabou por ser eleita em 2017 apenas por um mandato).

Desenho do Hospital das Ilhas, no Cotai.

Outra estreia adiada foi a do hospital. Aliás, em 2013 – pelo menos cinco anos após ter sido anunciado – o arquiteto Eddie Wong foi selecionado, por ajuste direto, para ficar com o projeto. Precisaram-se de outros cinco anos para lançar o concurso público para a construção dos edifícios principais da obra.

“Questionei uma vez [as autoridades] sobre os atrasos e responderam-me que os profissionais locais não tinham experiência para desenhar um hospital e precisaram de o refazer repetidamente”, nota Agnes Lam, salientando o facto de diferentes governos (encabeçados por Edmund Ho, Chui Sai On e Ho Iat Seng), “provavelmente com diferentes visões”, terem liderado a empreitada.

De acordo com o novo plano quinquenal para Macau (2021-2025), em consulta pública até 13 de novembro, o Governo vai “procurar garantir que o Complexo de Cuidados de Saúde das Ilhas esteja concluído em 2022 e entre em funcionamento de forma faseada em 2023”.

Leia mais sobre o novo plano quinquenal em: Desenvolvimento urbano em Macau pouco claro

“Uma vez que consta do plano quinquenal, terá de ser feito. Esse é igualmente o estilo no continente chinês, tudo o que vem no documento deverá acontecer”, defende Lam, também presidente do Centro de Estudos da Universidade de Macau.

Problemas de comunicação e alegado nepotismo

Com os repetidos atrasos do complexo hospitalar, as autoridades têm-se escusado a avançar com novas estimativas para o custo total da obra. Um cálculo inicial, de 2010, apontava para dez mil milhões de patacas, mas o deputado José Pereira Coutinho, que diz ter “muitas reservas” em relação à abertura do projeto em 2023 “por causa da pandemia”, entende que os números estão desatualizados.

José Pereira Coutinho: Como muitos dos nossos governantes estão ligados direta ou indiretamente aos interesses do hospital privado, havia grande interesse, no passado, em atrasar o máximo possível a entrada em funcionamento

“Não tenho ideia de qual vai ser o custo final, aliás, nem o próprio Governo, porque quanto mais atrasarem as obras, quanto mais demorarem os contratos de parceria pública, que são contratos complexos e que envolvem várias vertentes de fornecimento de serviços, menos barato é”, nota o também presidente da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau.

A prática adotada para a realização desta megaestrutura foi uma das razões que contribuiu para o atraso da mesma, chegaram a reconhecer as autoridades locais. Segundo determina o modelo, cabe aos serviços utentes (Serviços de Saúde) a conceção do projeto e às Obras Públicas a apreciação e construção da empreitada.

Raimundo do Rosário, secretário para as Obras Públicas e Transportes, admitiu, em dezembro de 2017, a existência de problemas de comunicação entre gabinetes: “Por isso é que precisamos de muito tempo para dialogar e receber os pareceres de outros serviços”.

Já o deputado Pereira Coutinho, um dos críticos da demora do novo hospital no seio legislativo, acusa o Governo de nepotismo. Lembra a “grande bronca” na entrega do desenho do projeto, por convite, a Eddie Wong, “membro do Conselho Executivo”: “As autoridades de saúde não concordavam com o desenho providenciado por esse arquiteto que tinha sub-encomendado esses mesmos desenhos a uma terceira empresa, demorando-se aí anos”.

José Pereira Coutinho, membro da Assembleia Legislativa e presidente da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau.

O deputado português menciona, além disso, “um atraso propositado” na construção, em benefício do hospital privado Kiang Wu: “Como muitos dos nossos governantes estão ligados direta ou indiretamente aos interesses do hospital privado, havia grande interesse, no passado, em atrasar o máximo possível a entrada em funcionamento”.

No currículo dos dois anteriores chefes de Governo da RAEM, Edmundo Ho e Chui Sai On, constam cargos de liderança na Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu.

Também em 2018, Coutinho contestou a atribuição do Edifício Pedagógico de Enfermagem do novo complexo de saúde a esse mesmo hospital privado. “Que estudos foram feitos, e porque é que a população e as associações médicas e outras de natureza análoga não foram auscultadas?”, quis saber na altura o deputado sobre o plano, entretanto abandonado, já durante a governação de Ho Iat Seng.

Desenho do Hospital das Ilhas, visto de outra perspetiva.

Um politólogo entrevistado pelo PLATAFORMA admite a existência de “permanentes” irregularidades nas edificações públicas. O cientista político local, que pediu para falar sob anonimato – “quero manter-me afastado de problemas” – realça “atrasos e derrapagens orçamentais em quase todas as grandes obras”.

Quanto à necessidade de fiscalização governamental, o analista avalia que “agora que os deputados pró-democracia foram expulsos da AL”, o “controlo será menor”.

“Talvez caiba aos media não-chineses – em língua portuguesa e inglesa – ou às redes sociais essa função”, sugere.

Cerca de 20 candidatos à AL viram-se em julho excluídos das eleições por “não serem fiéis à Região Administrativa Especial de Macau”, numa decisão em muito semelhante à tomada por Hong Kong, em 2020, quando deputados da ala democrata foram destituídos sob pretexto de representarem uma ameaça à segurança nacional.

Leia mais sobre o assunto em: Macau exclui 21 candidatos ao parlamento por não serem “fiéis” ao território

O PLATAFORMA contactou outros dois cientistas políticos para este trabalho, que se escusaram a falar, alegando não estar a par do tema. Também o Gabinete do Secretário para as Obras Públicas e Transportes não respondeu até ao fecho desta edição às questões enviadas por este jornal.

Secretismo à volta de modelo de gestão

Foi há cerca de um mês que os Serviços de Saúde avançaram a hipótese de uma parceria público-privada como modelo de exploração do novo hospital. A possibilidade surgiu na sequência de um estudo encomendado à Faculdade de Medicina da Universidade de Hong Kong e prende-se com a necessidade de conter os gastos públicos com a saúde e de reforçar a eficiência no funcionamento da estrutura médica.

Fernando Gomes: Não há um serviço no hospital público que não se debata com falta de espaço para acomodar os doentes

O anúncio foi inesperado. Contudo, o novo modelo pode ser uma forma de “ultrapassar as grandes dificuldades que Macau tem em gerir por si próprio um hospital público”, declara Pereira Coutinho.

De acordo com a Rádio Macau, a opção pode recair sobre o Peking Union Medical College Hospital, uma instituição privada do Interior da China, criada, em 1921, pela Fundação Rockefeller. O PLATAFORMA tentou confirmar estas informações junto das autoridades competentes, que também não responderam às perguntas endereçadas, com a justificação de que “todos os departamentos dos Serviços de Saúde estão envolvidos no combate à pandemia”.

Leia mais sobre o assunto em: RAEM negoceia gestão do complexo da Ilhas com Hospital de Pequim

Agnes Lam defende uma consulta pública a este respeito e pede mais transparência ao Governo: “Sabemos muito pouco sobre isto. Esta é uma das políticas mais importantes para os próximos dez anos. Vamos pagar mais? Vamos ter mais qualidade médica? E em que moldes vai ser o apoio do Governo? Já pagamos [mais de] sete mil milhões de patacas por ano (para a saúde), embora isso não seja percetível”.

Entidade pode contribuir com corpo clínico

Não há uma norma global relativamente ao número de camas de internamento, mas os valores de Macau encontram-se abaixo de várias cidades ou países da região. No ano passado, existiam 1715 unidades no território, ou seja 2,6 camas por mil habitantes, de acordo com dados da Direção dos Serviços de Estatística e Censos. Hong Kong, por exemplo, tinha 5,6 camas por mil habitantes em 2019; um ano antes, a Coreia do Sul totalizava 12,4 e o Japão 12,9. Quando as obras do Complexo de Saúde das Ilhas ficarem concluídas, o número de camas de internamento deverá aumentar em 1100, o que pode significar 4,1 unidades por cada mil habitantes.

“Não há um serviço no hospital público que não se debata com falta de espaço para acomodar os doentes”, alerta Fernando Gomes, presidente da assembleia-geral da Associação de Médicos dos Serviços de Saúde de Macau, sublinhando que “não vai ser fácil” ter o novo hospital já a funcionar em 2023.

Fernando Gomes, presidente da assembleia-geral da Associação de Médicos dos Serviços de Saúde de Macau.

Para o fisiatra, um modelo assente na cooperação entre os setores público e privado pode ser a solução para a constituição do corpo médico do novo hospital. “Em primeira mão, [a entidade gestora] pode fazer uma rodagem do seu corpo clínico e, num segundo tempo, uma formação local de colegas”, defende Gomes, que considera urgente a abertura do Complexo de Cuidados de Saúde das Ilhas “para colmatar muitas necessidades e alguma precariedade em algumas especialidades”.

Quanto à possibilidade de ser o Peking Union Medical College Hospital a responsabilizar-se pela gestão, o clínico – que já visitou o espaço na capital chinesa – realça que se trata de um projeto “de grande referência em todas as áreas de especialidade”. Contudo, deixa a ressalva: “Agora depende do conteúdo do contrato. Se assim obriga que haja formação para poder localizar alguns quadros, e também que exija uma certa correspondência em termos de qualidade”.

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