Início Opinião Existe uma matriz cultural portuguesa?

Existe uma matriz cultural portuguesa?

João MeloJoão Melo*

Sim, mas num mundo cada vez mais global a língua vai sendo um dos últimos repositórios de informação cultural, independentemente de quem a fala, do espaço geográfico onde se fala; daí Fernando Pessoa ter afirmado que “a minha pátria é a língua portuguesa”. Se a observarmos ao microscópio descobriremos um ADN sobretudo romano, com partes de grego, árabe e outras culturas. Todas sobreviveram com mais ou menos dificuldade através das palavras que usamos, por isso detesto emojis, são uma espécie de radiação que destrói o ADN, a tal informação cultural, e nem nos podemos queixar de falta de aviso, afinal têm a mesma cor dos alertas de perigo de radioactividade. O português adquiriu características locais, nomeadamente no Brasil e países africanos, servindo as suas expressões no presente. No futuro a mesma língua de agora poderá ser falada por povos totalmente apartados da cultura que a gerou; daqui a uns séculos, se entretanto a radiação não destruir tudo, alguém dirá que observada ao microscópio essa língua apresenta um ADN sobretudo português. E o que é ser português? Não distingo no dia-a-dia a diferença entre traços do meu carácter e a cultura onde me formei, a mistura adensou-se. Assim as próximas histórias são experiências pessoais que julgo conterem algumas indicações do que é ser português.

A matriz que descobri existir inculcada em mim

Aventura

Durante a adolescência conquistei a custo alguma independência dos meus pais, conseguindo convencê-los a deixarem-me fazer campismo selvagem… sozinho; durante uns verões fui para o sudoeste alentejano com a trouxa às costas. Um dia estava na praia a mirar a ilha do Pessegueiro e pensei “porque raio não haveria eu de ir ali”? Entre as amizades de férias contavam-se lendas sobre o castelo em ruínas, um túnel secreto que ligaria a ilha ao continente, tudo muito ao jeito de “Os Cinco” da Enyd Blyton. O problema é que há um mar a separar. O problema? Para um imbecil de 15 anos isso não é um problema, é um desafio. Esperei a maré baixa e lancei-me ao mar munido apenas de calções de banho. Após uma travessia complicada pisei terra, pesquisei a ilha e finalmente fiquei no sítio mais alto a admirar o oceano sem obstáculos visuais, de costas para os medrosos na praia. Contudo o silêncio e a solidão fizeram-me meditar: “terá sido isto que o Neil Armstrong sentiu? Sim, conquistei a Lua, e depois?” A vacuidade do objectivo inundou-me o espírito, não passara de uma fanfarronice juvenil. Ou seja, fui à procura de glória e encontrei auto-conhecimento… Já vi no Google Earth que a distância percorrida são uns meros 600 metros ida e volta, só que passando lá recentemente vi a ilha da praia e caramba, impressiona, hoje não faço ideia como realizei o desiderato.

Desenrascanço

Nos primeiros tempos das minhas lides musicais com bandas de rock percorríamos o país em espectáculos, quase sempre comprados por agentes locais; malgrado sermos inexistentes em termos mediáticos, os agentes faziam questão de nos levar a suas casas a jantar, apresentando-nos à família e amigos que “por acaso” passavam lá nesse dia. Éramos exibidos à laia de troféu e se não tivéssemos discernimento ainda cairíamos no logro de nos julgarmos importantes; felizmente para a minha saúde mental sempre me senti no meio do show biz mais Gungunhana que princesa Diana. Numa ocasião, em pleno interior alentejano, acabado o repasto em casa do agente, dirigimo-nos à única tasca da aldeia para os inevitáveis cafés; fazendo a contabilidade da comitiva, quem quer e quem não quer, deu para aí uns 12. Pedido feito ao dono da tasca, a resposta veio ríspida: “-isso é que era bom! Na fazia mai nada do que ficar aqui a noite toda tirando caféis só para vocêis…” Bem, esta irredutibilidade obrigou-nos a sermos criativos: fomos lá dois a dois pedi-los e assim o homem serviu toda a gente.

Procrastinação

No final dos anos 80, com a cabeça cheia de sonhos larguei o sol de Lisboa e fui para a sombria Londres à procura duma carreira musical. Respondi a um anúncio do jornal Melody Maker para vocalista duma banda com os atributos que apreciava, fiz a audição e fiquei. No dia do primeiro ensaio marcado para as 15 horas, naturalmente saí de casa uns 10 minutos antes; cheguei próximo das 15,20h e ninguém em Portugal imagina a violenta indignação que me esperava, queriam correr imediatamente comigo da banda por causa do atraso. Eu nem conseguia reagir tal a estranheza sobre minha suposta grave falha e pensava que “estes gajos não regulam bem, vimos fazer música ou picar o ponto?” No meio da confusão preparatória para o linchamento, o baixista (irlandês) lançou a dúvida: “-esperem lá, nós dissemos-lhe 15h ou 15,30h?” Nesse momento as nuvens abriram-se, comecei a ouvir cantatas de Bach e apareceu um anjo que me segredou em português ao ouvido: “-aproveita, pá!” Percebi a janela de oportunidade e com a maior desfaçatez do mundo, qual Egas Moniz descalço e de corda ao pescoço respondi com vozinha sumida: “-pois, não sei, a mim disseram-me 15,30h.” Ninguém em Portugal consegue imaginar a súbita transfiguração do bando KKK britânico: desfizeram-se em desculpas, constrangidos por me colocarem à beira de uma imolação injusta. Este rigor impressionou-me tanto que me envergonhei de enganar os totós, e a partir daí raramente me atraso, quando sucede até fico mal disposto.

A matriz que descobri existir por aí antes de mim

Generosidade

No tempo do Fidel fui a Cuba e aluguei um jipe para vaguear pela ilha. No primeiro dia perdi-me no interior e pedi ajuda a uns transeuntes; eles perguntaram-me se podia levar uma senhora que me indicaria o caminho, íamos para o mesmo lado. No trajecto fiquei a saber que ela era médica e ganhava 20 dólares por mês; 1 dólar era a gorjeta normal por um café tomado no hotel… Quando chegámos pedi à senhora que aceitasse 20 dólares pelo serviço prestado, conduzir-me ao destino. Recusou veementemente, também era só um mês de ordenado oferecido por alguém que nunca mais verá na vida… Em Havana fui abordado por um indivíduo amistoso que se ofereceu como guia e desconfiado perguntei-lhe quanto me iria custar a “gentileza”; mais desconfiado fiquei quando me disse que era de graça, fazia-o pelo prazer do contacto com estrangeiros, para mais sendo português. Lá aceitei e entre as visitas a sítios de interesse desfiou-me histórias de generosidade de outros compatriotas meus que me encheram de orgulho. Por falar nisso, antes de sair de Portugal vários colegas músicos tinham-me instruído a levar cordas, palhetas, etc para dar ao pessoal, coisas triviais e baratas cá, raras e caras lá, material que acrescente alguma dignidade à qualidade artística que já costumam possuir. Fizemos essa distribuição de produtos módicos geradores de felicidade, lanchámos, e ao final do dia ia deixá-lo quando veio “o” pedido. Ora bem, já cá faltavam as letras pequeninas do contrato; eis o que ele disse: “- João, podes ir ali comprar-me um pacote de leite em pó para a minha filha? Dá para 15 dias, custa 6 dólares e se for eu a comprar tenho de ficar naquela fila (enorme), se fores tu, por seres estrangeiro com dólares passas à frente…” Dois dias de gorjetas do meu café pagavam duas semanas de leite para a bebé dele. O rapaz esteve 8 horas a servir de guia, a inundar-me o coração de simpatia e foi isto que pediu em troca?… Claro, senti-me idiota por duvidar da candura que dele emanava desde o início

Amor

Estava em trabalho no Dubai em Junho de 2018. Sendo ano de Mundial de Futebol, um dia despachei-me mais cedo para ir com alguns conhecidos locais a um Sports Cafe ver o jogo Portugal x Marrocos. Não sou de me fazer notado na casa dos outros e receando deixar-me levar pelas emoções do jogo ofendendo alguma sensibilidade, mal entrei estabeleci um rastreio geral ao ambiente. Havia alguns ocidentais, poucos, mas não me pareceram portugueses, pelo menos não tinham cachecóis ou camisolas da Seleção. Julgo que não houvesse lá marroquinos mas talvez por fraternidade islâmica imaginei que os presentes apoiassem a equipa de Marrocos, o que posteriormente se confirmou; quanto mais não seja, num jogo em que não exista grande paixão pelas equipas em disputa tende-se a puxar pelos underdogs, e a equipa portuguesa não o é. Pouco depois de o jogo se iniciar… golo de Portugal. Nesse momento ouço uma gritaria vinda de uma zona que me havia escapado; eram três pessoas com cachecóis de Portugal. Não esperando ver ali compatriotas, ganhei coragem e dirigi-me a eles. Não falavam português, só “bom dia” e “obrigado”. Disseram ser de Goa, nunca tinham ido a Portugal mas “amavam o meu país”, e estavam ali a torcer pela Selecção; nem eu levara cachecol ou gritara no golo… Era uma mãe, o filho e a esposa deste, encontravam-se de férias e pareciam tão fascinados quanto eu pela troca de informações sobre as nossas terras, o que nos liga. Pessoas que manifestam tal sentimento merecem-me uma respeitosa admiração, e devido ao que envolve os nossos povos, emocionei-me… O domínio sobre os territórios vai e vem, mudam os senhores e as bandeiras, mas os afectos ficam. Por isso é sempre melhor espalhar o amor, a maior riqueza que há, o único legado eterno.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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