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Portugal dos pequenitos

João MeloJoão Melo*

Um estudo da Fundação Calouste Gulbenkian conduzido por Alice Ramos e Pedro Magalhães do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa revela que 63% dos portugueses aceitaria “um líder forte”; mostra também que esta disponibilidade para regimes autoritários anda a par com uma avaliação positiva da democracia.

Confusos? Os autores do estudo depreendem haver uma noção incorrecta do que é a democracia. Neste parâmetro situamo-nos ao mesmo nível de países de fraca cultura democrática do leste europeu, superando até a maioria deles. Eu diria que a democracia protege o direito à diferença e aí estamos todos de acordo, o desacordo principia no momento em que temos de tolerar a diferença ao nosso lado. É que o estudo olhou também para os grupos que os portugueses não querem ter como vizinhos, e entre os mais indesejados estão os toxicodependentes 64%, alcoólicos 62%, e ciganos 59%; muçulmanos e homossexuais são rejeitados por 22%, judeus por 19%, trabalhadores imigrantes e “pessoas de outra raça” por 13%. Apesar de ser chocante não é surpreendente. A investigação revela ainda que os portugueses estão entre os mais desconfiados da Europa. Sendo que a confiança interpessoal é a base para o associativismo e a participação na sociedade, lá se foi o mito do português aberto ao mundo que ainda persiste nos políticos da esfera do poder. 

Na verdade por mais que avancemos no século, tenhamos acesso à televisão e internet, por mais que imigremos e recebamos imigrantes ou turistas, as comunidades não passam de uma aldeia do Astérix. Quando em miúdo lia as suas aventuras houve uma frase do Obélix que fixei, não recordo a que povo se referia, se normandos, bretões, romanos, não interessa; uso-a até hoje para exemplificar a pedante intolerância de algumas pessoas: “gosto muito de (…) mas lá na terra deles”, basta preencher o espaço relativo ao complemento directo com uma nacionalidade, raça, etnia, religião, opção de vida, animal, coisa, etc. Constata-se que o movimento antirracismo não chegou aos ciganos que continuam a não ser vistos como pessoas, e sim um grupo em que todos os indivíduos têm as mesmas características, neste caso “criminosos, arruaceiros e aldrabões”. Ao dizerem isto os portugueses não sentem estar a usar estereótipos, a serem racistas ou preconceituosos mas “a dizer a verdade”, aquilo que “as pessoas pensam”. Este é o princípio na base do racismo e de partidos ao género do Chega. Negros e imigrantes já se enquadram na norma do antirracismo, entraram na narrativa politicamente correcta ainda que muitos dos inquiridos possam ser preconceituosos e racistas no seu quotidiano. Por esse motivo um dia vi nas notícias que um negro foi assassinado a tiros de pistola por um velho traumatizado pela guerra colonial, e uma senhora genuinamente indignada reportava conhecer o senhor assassinado referindo que ele “não fazia mal a uma mosca… apesar de ser de cor”. Veem? Era um dos “bons”.

Admito embirrar com o bardo do Astérix, todavia isso é uma coisa, outra diferente é detestar lisboetas porque um vizinho meu natural dessa região ouve a Cidade FM aos berros. Geralmente aí considera-se só um fulano malcriado, não é? Se ele tivesse alguma característica própria das minorias imagino as mangas que o pano daria para produzir. Não pretendendo destacar um grupo, sempre sujeito à particularidade da experiência de cada “português” (a minha por exemplo assenta em playlists indesejadas), intriga-me o que levará 19% das pessoas a apontar os judeus? É incrível como os preconceitos estão tão arreigados, sobrevivem a holocaustos, eternizam-se. Quase metade dos portugueses considera “certo” que a mulher trabalhe porém diz que “o que a maior parte das mulheres realmente quer é um lar e filhos”. Assim não admira que no rodapé de chamada de atenção de um telejornal para a notícia seguinte alguém ache normal escrever “uma mulher à frente da TAP?” Aos que não vislumbram nenhum problema nisso eu pergunto: se fosse um homem estaria escrito o seu nome ou “um homem à frente da TAP?” O sexo é factor distintivo de liderança, competência? Pelos vistos sim, a mulher não chega a ser uma pessoa, particulariza-se uma característica desnecessária para a função, o que seria igual a dizer “um preto à frente da TAP?”

Os governantes tentam compensar as desigualdades das minorias aplicando certas medidas excepcionais, o que faz crescer o ressentimento das maiorias. Um cidadão ucraniano foi barbaramente espancado até à morte por agentes do SEF, um escândalo para a imagem do país, a sua esposa recebeu uma indemnização em tempo record para os padrões da justiça portuguesa. Quem está no poder e possui sentido de Estado teria de fazê-lo, no entanto irá acentuar a clivagem interna. Já ouvi representantes de vítimas de diferentes mortes reclamar do tratamento especial dado a este caso. Bem, o normal seria todos receberem em tempo justo mas não tendo visibilidade internacional, e os tostões andarem contados, os pagamentos ficam para as calendas; ainda serão contestados em tribunal porque também existe o preconceito de que o “português anda à mama de subsídios”, tenham paciência. Se o Estado desconfia dos cidadãos e nós uns dos outros, ninguém aceita que o vizinho tenha comprado um carro melhor só pode ter-se endividado ou é fruto de um esquema duvidoso, de que jeito poderíamos confiar em estranhos? Pelo menos ficou claro em quem votarão as famílias das vítimas nacionais nas próximas eleições…    

O estudo conclui que os portugueses estão sistematicamente de pé atrás em relação aos seus pares, não havendo explicações em termos de orientação ideológica de esquerda/direita; são os mais velhos e menos instruídos os mais desconfiados. Bingo! Cá está a raiz de todos os “ismos” negativos, a falta de educação, a cristalização de conceitos. No livro “Os Dragões do Éden”, Carl Sagan contou que primatólogos japoneses tentavam resolver um problema de fome numa comunidade de macacos de um ilha, atirando bagos de trigo para a areia da praia. Ora sabemos que é difícil separar os bagos um a um dos grãos de areia, e um dia uma jovem macaca, irritada ou por acaso, atirou mãos-cheias dessa mistura para a água; o trigo flutua, a areia afunda-se, facto de que se deu conta. O que sucedeu nos tempos seguintes? As fêmeas e os jovens adoptaram o novo método enquanto os mais velhos, nomeadamente os machos do topo da hierarquia preservaram os seus “princípios”, mastigando orgulhosamente bagos de trigo com areia. Enquanto nos empenharmos exclusivamente a defender o ego ou conhecimentos adquiridos (quer sejam muitos ou poucos) nunca estaremos abertos ao desafio da evolução, seremos como uma irredutível aldeia de gauleses vivendo uma fantasia. Sim, não sei se sabem mas essa aldeia era uma ficção, na realidade toda a Gália foi conquistada pelos romanos.

*Músico e embaixador do Plataforma

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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