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Não com o nosso dinheiro!

Inês de Sousa RealInês de Sousa Real*

A Assembleia da República rejeitou o fim do financiamento com dinheiros públicos da  tauromaquia. Para os projetos de lei apresentados, onde se inclui uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos, em causa estão opções políticas relativamente à forma como o dinheiro dos contribuintes vem sendo aplicado nesta atividade anacrónica e violenta, em detrimento de tantas outras áreas que não afrontam os valores éticos e que são absolutamente fundamentais, como a Saúde, a Educação ou a Cultura. 

A atividade tauromáquica nunca deveria ter sido financiada ou beneficiada pelo Estado, menos ainda numa altura em que atravessamos uma crise económica e social sem precedentes e em que tantos sacrifícios têm sido impostos ao país e aos portugueses.

A senciência dos animais é hoje uma evidência inquestionável, entendendo-se como tal, a capacidade de sentir, perceber ou de ter consciência, ou de experimentar a subjetividade, por parte dos animais

É incompreensível que ouçamos recorrentemente que, em nome do equilíbrio orçamental das contas públicas, não há dinheiro para reduzir a mensalidade das creches para as famílias mais afetadas por esta crise; para apoiar estudantes que não têm um computador em casa; para alargar a tarifa social de energia;  para garantir a existência de apoios sociais aos artistas; para reforçar o serviço nacional de saúde; ou ainda para melhorar as condições de trabalho das forças de segurança. Mas há dinheiro para entregar a uma atividade que se dedica a explorar a violência gratuita!

A este respeito é importante falar-se em dados, mas também conduzir o debate para os campos  da ética e dos valores.

A senciência dos animais é hoje uma evidência inquestionável, entendendo-se como tal, a capacidade de sentir, perceber ou de ter consciência, ou de experimentar a subjetividade, por parte dos animais. Assim o defendem nomes como  Marc Bekoff ou Carl Safina, ou conforme a Declaração de Cambridge, proclamada em 2012 por renomados neurocientistas, segundo a qual “o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos”.

Foi precisamente a capacidade de sofrimento que os animais partilham com o ser humano (e até em exteriorizar esse sofrimento) um dos fundamentos que sustentou o alargamento da ética aos animais e ao reconhecimento de um interesse legítimo tutelado ao não-sofrimento.Para o constitucionalista Javier de Luca, à semelhança dos direitos humanos, também aos animais devem ser reconhecidos como inquestionáveis os direitos ao não sofrimento e a não ser torturado, para mais quando em colisão com direitos ou interesses secundários do ser humano, como o direito à fruição cultural. Entre nós distintos académicos, como Fernando Araújo ou  Menezes Cordeiro, têm contestado a violência das touradas e defendido a aplicação dos valores ético-humanistas aos animais. 

Não obstante, apesar de o nosso país ter reconhecido um estatuto jurídico próprio dos animais, de ter uma Lei de Proteção aos Animais, o mesmo legislador que reconhece esta atividade como uma forma de maltrato continua incompreensivelmente a permitir a brutalidade das touradas, ao arrepio até das Recomendações da ONU, que instou Portugal a afastar as crianças e jovens da violência da tauromaquia. 

Por outro lado, a ideia que o sector tauromáquico tem procurado passar de que não existe financiamento público ou qualquer benefício a esta atividade não podia ser mais falaciosa. Não nos equivoquemos: a realização de touradas em Portugal depende de subsídios e diversos apoios, que podiam e deviam ser utilizados de forma mais útil e ética, como, por exemplo, os apoios atribuídos anualmente pela Direção-Geral de Alimentação e Veterinária, que abrangem o financiamento para as provas de avaliação morfológica e funcional dos bovinos da raça brava de lide e equídeos para toureio. Para não falar do uso de fundos da União Europeia para o pagamento de ajudas, prémios e subsídios à criação de bovinos de lide (destinados às touradas), uma vez que não é feita a distinção entre os bovinos que são destinados à produção de alimentos e aqueles que são encaminhados para as touradas.

A esta fatura acrescem ainda os benefícios provenientes da transmissão das corridas de touros no canal público de televisão, os apoios das autarquias para aquisição de bilhetes, comparticipação na construção e reabilitação de praças de touros, publicidade ou escolas de toureio. Veja-se o ultrajante caso da Praça de Touros do Campo Pequeno,  em Lisboa, que, como se pode verificar na própria caderneta predial, beneficia, nada mais nada menos, de uma isenção de IMI no valor de 9 milhões de euros/ano! Quantas famílias com rendimentos baixos ultrapassam em escassos euros o estabelecido por lei e ficam, por isso, de fora do regime de isenções do IMI? Ou outros espaços comerciais ou de espetáculos que não gozam de qualquer isenção?!

Resulta daqui que, de um lado, temos inúmeras medidas da mais elementar justiça económica e social que são deixadas para trás e, de outro, temos uma atividade insustentável e cruel, fortemente contestada pela sociedade civil, mas para a qual os apoios estão sempre garantidos, numa máquina de dinheiros públicos que está permanentemente ligada.

Isto é de uma injustiça social absolutamente incompreensível e constitui uma opção política própria do regime derrubado em abril de 1974, para mais quando falamos de uma atividade que promove a violência e é responsável pelo maltrato, sofrimento e morte de milhares de animais todos os anos no nosso país. 

E por mais que o lobby da tauromaquia se proponha escudar numa alegada dimensão cultural da atividade, a cultura não é um fenómeno imutável! Da mesma maneira que se forma, também se perde ou bane, quando deixa de acompanhar os valores da sociedade em que vivemos.Tolerar uma cultura de violência e, pior, elevá-la a espetáculo e fazer dela gáudio público é de uma profunda anomalia de valores que não pode persistir ao nosso tempo.

Na passada sexta-feira PS e PSD, que se dizem moderados, optaram por se posicionar ao lado do lóbi de um dos setores mais extremados e agressivos da sociedade portuguesa e de forças políticas como o CDS-PP e o CHEGA, ignorando o clamor de uma sociedade civil, que há muito pede ao Parlamento avanços éticos e civilizacionais que não se coadunam com a manutenção desta atividade, menos ainda com o seu financiamento.

Não é aceitável, nem justo, que os portugueses, sobretudo para quem a violência contra animais constitui uma afronta à sua sensibilidade, tenham que contribuir financeiramente para um espetáculo que está longe de ser consensual na sociedade. O Estado português não pode continuar a dar à tauromáquica bombas de oxigénio com dinheiros públicos. Não com o nosso dinheiro! 

  • Deputada do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) – Portugal

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