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A troika dos anos vinte?

António FilipeAntónio Filipe*

Não é de falta de elogios que os trabalhadores se queixam nestes dias de pandemia. Elogios tem havido muitos e de todos os quadrantes. Só que são muitos milhares os trabalhadores que por estes dias ganham em elogios o que perdem em direitos.

Elogios vindos até daqueles que, a pretexto de ordens da troika, cortaram salários, suprimiram direitos, aumentaram jornadas de trabalho, mas que agora se apresentam como os mais firmes defensores dos direitos que liquidaram.

Nos últimos cinco anos, muitos trabalhadores recuperaram rendimentos e direitos que tinham perdido. Ficou demonstrado que o caminho certo para o progresso económico e social não era a dita austeridade e que o país só está melhor se os portugueses que vivem do seu trabalho estiverem melhor.

Nesta situação, o aparecimento da pandemia de Covid-19 foi a tempestade perfeita para quem vive do seu trabalho

Mas, no momento em que a pandemia se atravessou no nosso caminho e mudou para pior o nosso modo de vida, muita esperança estava por concretizar. Numa questão crucial, como é a legislação laboral, não houve evoluções positivas nos últimos anos. Portugal chegou a 2020 com uma economia ainda assente em salários escandalosamente baixos, em que muitos milhares de trabalhadores empobrecem a trabalhar. Com níveis de precariedade inaceitáveis. Com a frustração de legítimas expectativas de progressão nas carreiras. Com as leis da selva a imperar no mundo do trabalho perante uma ACT pouco mais que inoperante. Com a sabotagem da contratação coletiva por parte do patronato. Com uma desregulação das relações de trabalho que impede a conciliação do trabalho com a vida familiar, e, no final de 2019, com o alargamento para seis meses do período experimental.

Nesta situação, o aparecimento da pandemia de Covid-19 foi a tempestade perfeita para quem vive do seu trabalho.

A pandemia não é uma obra de ficção. Sabemos que haveria consequências inevitáveis em muitas esferas da vida. Mas também sabemos que, no mundo do trabalho, a pandemia tem as costas largas e que não falta quem se aproveite destas circunstâncias para levar por diante o que sempre quis, fragilizando ainda mais a situação dos trabalhadores, aumentando ainda mais as desigualdades sociais, contribuindo para o aumento da pobreza e da exclusão.

Dizem-nos que estamos no mesmo barco, mas escondem com esse suposto igualitarismo que nesse barco há uma minoria que viaja em primeira classe e um número cada vez maior de passageiros mandados para o porão.

Para largos setores do patronato, esta pandemia veio a calhar para generalizar formas de trabalho que de há muito tentam impor

E esses são os trabalhadores que foram despedidos para que os acionistas das suas empresas pudessem continuar a receber dividendos. São os trabalhadores com vínculos precários que viram os seus contratos não serem renovados a pretexto da pandemia. São os trabalhadores sem vínculo que foram simplesmente postos na rua. São os trabalhadores independentes, ou ditos independentes, que ficaram sem rendimentos para garantir um mínimo de condições de vida. São os trabalhadores remetidos para o lay-off com perda de um terço do salário sob a ameaça da perda dos postos de trabalho, mesmo em casos em que não há nenhuma justificação para isso.

Para largos setores do patronato, esta pandemia veio a calhar para generalizar formas de trabalho que de há muito tentam impor. Acenam com as maravilhas do teletrabalho e do ensino à distância e proclamam em tom quase triunfal que nada voltará a ser como dantes.

Não está em causa o aproveitamento do progresso tecnológico para o desenvolvimento e a melhoria das condições de trabalho e da vida. O que está em causa é a criação de ilusões baseadas em vantagens, como o tempo poupado em transportes ou o reforço da autonomia individual, para ocultar a real fragilização resultante da disponibilidade permanente, da pressão para o aumento do tempo e ritmo do trabalho, da transferência de encargos sociais da empresa para o próprio trabalhador, da devassa da privacidade a pretexto da necessidade de controlo do trabalho efetuado no domicílio, do confinamento social imposto aos trabalhadores.

Na situação de pandemia que atravessamos, o país deve aos seus trabalhadores o funcionamento dos serviços de saúde, o fornecimento de bens e serviços essenciais, o fazer das tripas coração para que o ano escolar não fosse perdido, a recolha do lixo, o esforço do pessoal das autarquias no apoio às populações, o apoio a quem se viu impossibilitado de sair de casa, a garantia da segurança pública, o funcionamento de sectores essenciais para evitar consequências ainda mais graves para a economia nacional, a enorme vontade de retomar a atividade, de tomar medidas de proteção da saúde pública e de enfrentar adversidades para que a vida possa retomar a normalidade possível.

São estes os trabalhadores, a quem ninguém nega elogios, mas a quem são negados direitos fundamentais e salários justos e não é admissível que os direitos dos trabalhadores sejam lesados, não pela pandemia, mas a pretexto da pandemia. O que estamos a dizer é que o esforço que o Estado tem de fazer para que o país recupere da pandemia passa necessariamente pelo apoio a todos os que, vivendo do seu trabalho, viram os seus rendimentos pessoais e familiares gravemente afetados.

A pandemia não pode ser a troika dos anos vinte. Perante as consequências nefastas desta pandemia, só há um caminho viável para a recuperação. Reforçar os serviços públicos que se revelaram essenciais e avançar decididamente na promoção dos direitos dos trabalhadores. Retrocessos nunca mais.

*Deputado do Partido Comunista Português (PCP) à Assembleia da República Portuguesa

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