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“Nenhum serviço estava preparado”

O presidente do IACM diz que a falta de recursos foi um dos grandes problemas que dificultou a gestão após o tufão Hato e afirma que é preciso exigir mais das concessionárias de serviços básicos. José Tavares diz que o Governo fez o que pôde mas que há lições a tirar.

 

Estar sempre preparado. Foi esta a grande lição do tufão Hato para o presidente do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM). Em entrevista exclusiva ao PLATAFORMA MACAU, José Tavares conta como foram as horas depois da pior tempestade das últimas décadas, fala do volume dos estragos e assume ter ficado desiludido com a incapacidade de resposta por parte da companhia que recolhe os resíduos da cidade. Renegociar os contratos com as empresas concessionárias de serviços básicos de forma a garantir recursos extra é uma das medidas que o Governo deve tomar já para que a calamidade de 23 de agosto não se repita. 

– O IACM estava preparado para uma situação como a que se viveu com o tufão Hato?

José Tavares – Nenhum serviço estava preparado porque nos vimos confrontados com uma situação de calamidade histórica. Não estávamos preparados. Isto não quer dizer que não tenha havido preparação e atenção da nossa parte. Tínhamos experiência do passado, mas isto superou todas as expectativas. Houve todo o cuidado da nossa parte desde a primeira hora. Quando foi içado o sinal 3 [substituindo os anteriores sinais de nível mais elevado], reunimo-nos logo porque vimos que os estragos eram bastantes e que tínhamos de tomar decisões na hora. Decidimos que a primeira coisa a fazer era abrir novamente as estradas para garantir resposta a eventuais emergências. Foi essa a prioridade no primeiro dia. À uma da manhã parte das vias já estavam abertas, mas quando cheguei a Coloane vi que não tinha hipótese. Superou tudo o que esperava. Era um desastre. Estava tudo obstruído. O trabalho continuou até dia 24 e conseguimos abrir todas as vias. Depois, tivemos de tratar de outras questões como a recolha do lixo. Sabíamos que haveria muito lixo por experiências anteriores e por isso atacámos logo a zona ribeirinha e a baixa da cidade. Mas mais uma vez, ultrapassou o que esperávamos. De 24 a 31 de agosto, recolhemos 18 mil toneladas de lixo. Só no dia 26, que era o último dia em que podíamos trabalhar porque havia outro tufão a caminho, recolhemos 2,900 toneladas. É quase o dobro do lixo que se recolhe num dia normal. Isto quer dizer que eram necessárias duas ou três companhias do lixo para dar resposta, mas conseguimos graças à dedicação do IACM, da polícia, dos bombeiros, da Guarnição em Macau do Exército de Libertação do Povo Chinês, dos voluntários e da população.

– A população não acabou por fazer o trabalho do IACM?

J.T. – Não substituiu, complementou. Se não houvesse IACM e companhia do lixo, as pessoas não conseguiam fazer nada. Fomos nós que fornecemos o material de apoio para a recolha do lixo e que coordenámos parte do trabalho voluntariado. No dia 24, recebi aqui os responsáveis das zonas comunitárias para fazer um balanço e a coordenação dos voluntários. Disse para terem calma porque a primeira fase do trabalho era connosco. A remoção de árvores de grande porte, por exemplo, é um trabalho para os bombeiros e polícia. Depois desta fase, já pudemos montar a estratégia de coordenação dos voluntários.

– Mas não acha que a população achou que devia agir porque se sentiu desapoiada pelo Governo?

J.T. – A população sentiu que tinha de ajudar porque se apercebeu do estado de calamidade e viu que o Governo não tinha mãos a medir. O Governo conseguia dar resposta, mas provavelmente não em tempo útil. Se fosse o Governo a recolher o lixo sozinho, podia levar um mês e meio e não era admissível. Com a ajuda do Exército e da população, conseguimos fazer a recolha em menos de uma semana. Veja o que se passou nos Estados Unidos. Tiveram de declarar estado de calamidade e pedir à população que abandonasse as zonas de residência. Estamos a falar de uma superpotência. O que se passou em Macau foi praticamente a mesma coisa. A calamidade superou a capacidade de resposta. Este é o ponto que quero frisar. Foi um fenómeno da natureza. Nos últimos anos, temos assistido a vários ciclones e tempestades extremas por causa das alterações climáticas. Apenas por causa disso. Tudo isto é um aviso de que as coisas estão a mudar. A população e o Governo têm de tirar as devidas lições. 

– Que lições acha que devem ser tiradas?

J.T. – Estar sempre preparado. Nos últimos 40 anos, habituámo-nos a tufões sem grande gravidade e as pessoas perderam o sentido de prevenção. Quando era criança as pessoas preveniam-se e tinham um estado de alerta muito mais forte. As mortes que aconteceram também foram consequência de alguma falta de consciência. Tentar salvar as viaturas nos parques inundados… Temos de apostar em cursos de formação para o nosso pessoal e campanhas de sensibilização para a população. Isso tem de ser feito e não é difícil. 

– Disse que o Governo tem de estar mais bem preparado. O que há a fazer?

J.T. – Investir em recursos. Sempre defendi que o Governo tem de ter recursos extra. O Governo tem de ter margem de manobra para situações como esta. Por exemplo, perdemos cento e tal viaturas por causa das inundações porque as nossas viaturas estavam estacionadas nas zonas baixas. Se eu tivesse um terreno para arrumar os veículos, dava logo ordem para os retirar. De material, tinha 50 mil sacos de plástico e dez mil luvas. Tinha. Depois de dia 24, desapareceu tudo. Falei com o Chefe do Executivo e nessa mesma noite Cantão enviou 200 mil sacos de plástico e outros recursos de que necessitávamos, como bombeiros, carros de lixo, etc. A cooperação estreita entre as zonas é muito importante. É uma outra forma de dar resposta.  Tivemos um grande apoio do governo de Cantão. Também tivemos o apoio de empresas chinesas, como a Nam Yue e Nam Kwong, de empresas de construção civil locais e dos casinos, que facultaram pessoal e viaturas gratuitamente. Tivemos de organizar muita gente. Houve falta de coordenação mas não porque o IACM não quisesse coordenar, mas porque as pessoas tomavam a iniciativa e saíam. No futuro, devia haver uma entidade que coordenasse este trabalho. Se formos nós melhor, porque temos centros em todas as áreas que podem funcionar como zonas de distribuição de material e de comando. 

– Acha que era impossível evitar os danos causados pelo tufão por mais preparado que o Governo estivesse?

J.T. – Toco noutro ponto crucial: a questão do alerta e da previsão meteorológica. É um ponto que o Governo vai ter de pensar profundamente. Uma coisa é a previsão que vemos no noticiário. Outra é o alerta como o que vimos nos EUA, em que o próprio governador da Florida deu ordem de evacuação. É uma chamada de atenção para a gravidade da situação. Temos de pensar se vamos optar por fazer alertas ou continuar com este sistema de previsão meteorológica. 

– A queda e destruição das árvores foi outra das consequências da passagem do tufão. Como vai ser feita a reposição das espécies e reflorestação da cidade?

J.T. – A melhor altura para a substituição não é agora porque estamos em tempo de tufões, e depois vem o Inverno. Só para o ano, na Primavera. Em zonas urbanas, perdemos mais de duas mil árvores e temos 20 mil danificadas. Vamos ver que tipo de vegetação é melhor. Aproveitando o facto de ter havido pouco reordenamento nos últimos anos, é uma oportunidade. Primeiro, vamos passar a ter árvores de grande porte só nos jardins e zonas de lazer. Dentro da cidade, só vamos ter plantas que tenham capacidade de resistência ao vento para que não obstruam as vias no caso de caírem. Também vamos tomar medidas de médio e longo prazo. Coloane, por exemplo, foi muito atingido. Vamos pedir a ajuda de Cantão para enviar especialistas da área de agronomia e estudarem connosco a melhor forma de repor os 500 hectares afectados. Estou a falar de cerca de 500 mil árvores. 

– Também houve problemas ao nível da inspeção alimentar no pós-tufão.  

J.T. – Houve porque nunca vimos tantos alimentos estragados. De 24 de agosto a 1 de setembro, destruímos 360 toneladas de alimentos, 300 eram carne. Verificámos que alguns estabelecimentos tinham estado sem electricidade determinado tempo e, quando verificávamos que os alimentos não garantiam a qualidade necessária, dávamos ordem para se atirar para o lixo. Também houve a preocupação de que a carne não ficasse exposta com receio de que alguém a pudesse aproveitar. Tivemos de explicar aos locais de venda como empacotar e onde deixar a carne para depois podermos recolher. Reforçámos a inspecção da qualidade da água e da rede de abastecimento. Não verificámos qualquer anomalia. Com base no que os Serviços de Saúde explicaram, foi a falta de higiene e o corte de electricidade, que impediu a refrigeração dos alimentos, que provocaram os casos de infeção registados. As pessoas não tinham condições para tomar todas as precauções.

– A protecção civil vai passar a Direção de Proteção Civil e de Coordenação de Contingência, com serviço permanente. Qual é a posição do IACM neste novo mecanismo?

J.T. – Vamos continuar a fazer o que fazemos agora: apoiar os serviços de polícia e bombeiros. 

– A instalação de uma bomba para escoar a água em caso de cheias foi uma das medidas anunciadas pelo Governo. A obra estava prevista para o edifício da ponte-cais 23, mas o local foi recusado por causa do parecer do Instituto Cultural, que defende a preservação do imóvel. Que outros sítios estão a ser pensados?

J.T. – Ainda não posso confirmar porque não tenho a resposta final dos serviços, mas já tenho um local para instalar a bomba. Vai ser junto do cais 23, mesmo ao lado. Encontrei uma solução viável. Os Serviços de Assuntos Marítimos e de Água já deram luz verde, as Obras Públicas também. Agora é seguir o processo. Tenho perspectivas de poder abrir o concurso para instalar a bomba já em 2018. Esta bomba é muito importante porque vai recolher toda a água que vem da zona baixa e largá-la no mar. Lógico que se houver maré cheia como desta vez, não vai chegar. Numa situação normal, a bomba vai fazer com que haja menos cheias e por consequência menos inundações. 

– Sente que o IACM e o Governo falharam na resposta ao tufão?

J.T. – Das três grandes concessionárias – electricidade, água e telefone – só a da electricidade teve a visão de ter três horas de energia extra para alimentar as linhas. Foi a única companhia que teve essa capacidade de resposta. Futuramente, penso que o Governo vai ter de exigir que essas empresas tenham capacidade de garantir o que estão fazer e recursos extra. É a margem de manobra de que falo e que o Governo tem de ter. Hoje temos apenas os serviços para assegurar o funcionamento normal da cidade. A Companhia de Sistemas de Resíduos de Macau (CSR) vai ter de aumentar a capacidade de resposta, por exemplo de viaturas e recursos humanos. Falo em pelo menos 30 por cento. Tenho motoristas que posso emprestar mas sem viaturas não há recolha do lixo. As concessionárias têm de garantir recursos próprios para os casos de emergência e isto tem de estar nos contratos. Acho que é um ponto em que o Governo tem de pensar.

– Como é que avalia o trabalho da concessionária do lixo, CSR, que está sob a alçada do IACM?

J.T. – Conseguiu dar resposta mas não era a que queria. Esperava mais. Correspondeu de certa forma porque conseguimos encontrar soluções para os dias de emergência, mas esperava mais. Não tinham viaturas extra, por exemplo, e tive de pedir recursos a Cantão. Por isso, acho que o Governo tem de exigir às concessionárias uma capacidade extra. Não lhes pode chegar o que é suficiente para o dia a dia porque pode surgir uma situação como a do tufão.

– Sente que a imagem do Governo, e neste caso a do IACM, ficaram fragilizadas e que a população perdeu confiança nos serviços?

J.T. – Acho que não. Não baixámos os braços. Não parámos. É possível que nos primeiros dias tenham sentido isso, mas depois perceberam que a calamidade excedeu os limites. Senti que o Chefe do Executivo agiu de imediato. Reunia-me com ele constantemente. Tínhamos de reportar quase de seis em seis horas. A tragédia atingiu um nível que ultrapassou as nossas capacidades. Não houve falta de vontade do Governo, mas não tínhamos essa capacidade para uma situação deste nível. O próprio Secretário para os Transportes e Obras Públicas referiu que este tufão bateu todos os recordes, em termos de velocidade dos ventos e subida da água. Olho para o tufão como uma oportunidade para melhorarmos. É nos momentos de fragilidade que se consegue ver a capacidade de gestão do Governo. Não é nos bons momentos.

– Não acha que é uma lição demasiado pesada, tendo em conta o número de mortes e feridos além dos danos registados?

J.T. – Para todos, para nós, Governo, e para a população. Todos temos de aprender com este tufão. Temos de saber prevenir. É a partir deste ponto que vamos ter de definir princípios. As pessoas não sabem prevenir-se? Dá-se formação nas escolas. Eu fui educado assim. Agora já não se fala nestas questões porque nos sentimos protegidos e perdemos essa noção. Houve pessoas que saíram à rua com o sinal 8. É a prova que muita coisa tem de mudar, incluindo a mentalidade. E o Governo tem de se preparar e ter recursos extra.

– Tem uma estimativa dos estragos?

J.T. – As estimativas apontam para despesas na ordem dos 170 milhões de patacas. Mas ainda é uma estimativa muito por alto. Os estragos são incalculáveis. Por exemplo, as árvores são muito caras. Uma árvore pode custar mais de dez mil patacas. 

– Os serviços meteorológicos são apontados como os principais culpados do drama que se viveu depois da passagem do tufão. Não acha que a responsabilidade devia ser partilhada por todos os serviços já que todos mostraram ter limitações? 

J.T. – Todos tínhamos limitações, mas se calhar as dos serviços meteorológicos já vinham de há muito tempo. Esta foi a última gota de água. As pessoas têm de fazer as coisas atempadamente. Não quero falar muito sobre o caso até porque o responsável já tomou a decisão de se demitir, mas acho que os serviços podem reaprender de forma a tomar medidas para servir melhor a população. 

C.B.S

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