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Este governo não é capaz

Manuela António comemora esta semana 30 anos de advogacia em Macau. É uma voz crítica e desabrida, mas o seu alvo principal nem é a Justiça, que tem falhas, sobretudo na “falta de isenção quando está em causa a Administração”. Pior mesmo é a governação: “Se tivéssemos um governo capaz, podíamos ser como Singapura, um exemplo nesta área do mundo”. E o principal responsável é mesmo o chefe do Executivo, que peca por uma “absoluta falta de estratégia”.

– Após 30 anos a advogar em Macau, é uma das vozes que mais critica o ensino, os tribunais, o governo…. É uma decepção circunstancial ou, de facto, uma análise estruturalmente negativa?

Manuela António – Macau não tem nada a ver com o que era há 30 anos. É maior e mais cosmopolita, tem investimentos a uma escala internacional e um sistema financeiro incomparavelmente mais desenvolvido e sofisticado… Se tivéssemos um governo capaz, podíamos ser como Singapura, um exemplo nesta área do mundo. Hong Kong não é tão exemplar e Macau tem todas as características para se desenvolver com projeção internacional. Contudo, o governo não é capaz. Sobretudo ao nível do chefe do Executivo, que devia chefiar o Governo. Não temos conhecimento de que haja sequer reuniões de governo, para se definirem estratégias, como havia durante a Administração portuguesa ou com Edmund Ho.

– Isso reflete-se na retração do investimento?

M.A. – Sim, por uma absoluta falta de estratégia. Quando somos consultados sobre perspetivas para novos investimentos, não temos boas notícias. Sabemos que o governo quer diversificar a economia, mas não dá sinais das áreas que considera prioritárias. Podiam eleger o sector financeiro, o turismo, as infraestruturas, os transportes… E as empresas contariam com a aprovação de projetos, licenças, recrutamento de pessoal estrangeiro… Mas não há metas nem prioridades; não há uma estratégia. Aqui há um ano reunimos pessoas da Associação Industrial, do IPIM, advogados, gente da banca… E todos concluímos que neste momento não é atrativo investir em Macau. Nem se sabe o tempo que leva encontrar um espaço adaptá-lo. As Obras Públicas são uma desgraça e um projeto pode levar dois, cinco, dez anos ou 20 anos a ser aprovado.

– Há guidelines vindas de Pequim: projeto lusófono, integração regional, diversificação económica…

M.A. – Há dias ouvi o secretário para a Economia e Finanças – Lionel Leong – dizer que queria fazer disto uma plataforma financeira, priorizando projetos específicos de Macau. Para exemplificar falou no leasing e na locação financeira. Mas o que é que isso tem de novo e o que é que tem a ver com Macau? O que é que ele queria dizer com isso? Não se vê nada nem sinal algum. Nem eram precisos estímulos, porque há gente interessada. Bastava que dissessem, neste e naquele projeto, que era possível concretizá-los e em que prazos. Mas nem isso.

– Perdeu-se segurança jurídica nos investimentos?

M.A. – Claro! Há o tema recorrente da Lei de Terras. Expropria-se, sem indemnizar; com base numa lei com aplicação retroativa, contra todas as expectativas, e sabendo o governo que, em muitos casos, a culpa era da Administração. Como é que isto é possível? Quando o presente vai contra tudo o que se fez no passado, deixa de haver futuro.

– A Justiça está tão mal como o governo?

M.A. – Há muitos bons magistrados, sobretudo portugueses, mas também chineses. Mas há os que são uma nódoa. O Tribunal Administrativo, por exemplo, é uma desgraça. Tenho um caso que é esclarecedor e eloquente: num processo contra a Administração, depois da audiência esperámos dois anos pela sentença. Isto apesar de queixas ao Comissariado contra a Ilegalidade Administrativa, que disse nada ter a ver com isso; e ao Conselho Superior da Magistratura, que nem se dignou a responder. Agora recorremos mas, veja bem, perderam as cassetes com a gravação da prova, que são essenciais para demonstrar que o que se disse em audiência é precisamente o oposto daquilo que a sentença dá como provado. O juiz tem um mês para proferir a sentença, leva dois anos e nada acontece. Agora não sabem das cassetes?!

– A Justiça é tardia ou é ministrada em tempo útil? 

M.A. – O Tribunal Cível está a trabalhar bem; no crime não me pronuncio porque fazemos pouco; mas no tempo do antigo procurador não se percebia o critério para uns processos andarem e outros e agora há um esforço para as coisas andarem. Nos tribunais comuns, em geral, não há demora.

– Não há falta de magistrados?

M.A. Talvez haja, mas os que existem procuram cumprir prazos e ser rápidos. A Justiça, no Cível, é rápida; na Segunda Instância é rápida e de qualidade; no Administrativo é uma lástima e há falta de isenção nos processos contra a Administração. Ou então é uma grande coincidência, porque mais de 90 por cento dos processos contra a Administração são perdidos.

– São precisos mais magistrados portugueses?

M.A. – Antigamente os magistrados eram muito bem pagos e era possível recrutar os melhores que havia em Portugal.

– Hoje recruta-se pouco em Portugal, mas não é por falta de verbas. Haverá um problema ideológico?

M.A. – Há receio de que se diga que Macau não tem magistrados à altura e depende do recrutamento externo. É uma pena porque isso só valorizaria a Justiça e as boas decisões permitem que os magistrados locais cresçam e se desenvolvam.

– O presidente da Associação dos Advogados – Neto Valente –  disse recentemente que a língua portuguesa é “olimpicamente desprezada” nos tribunais…

M.A. – É verdade, embora no Cível a maioria das decisões, mesmo por magistrados chineses, sejam escritas em português. Em muitos casos pedimos que o processo decorra em português – direito dos advogados – e isso não é respeitado, mas as decisões são em português. O problema é bem mais grave no Crime e no Administrativo. Um bom magistrado tem de dominar a língua portuguesa, por causa dos conceitos, da doutrina e da jurisprudência comparada.

– Há também aqui carga ideológica? 

M.A. – Acredito que haja entre os magistrados chineses receio de não serem vistos como amantes da Mãe Pátria se não escreverem em chinês. Mas também é uma defesa: os menos competentes refugiam-se no chinês para terem menos escrutínio.

– Quando um ex-procurador é acusado por quase 2.000 crimes não está em causa todo o sistema?

M.A. – Claro! E só está a ser acusado de crimes numa área que não era a dele, o que não faz sentido. Até parece que o senhor tinha uma dupla personalidade: quando estava no exercício das funções de Procurador era isento; quando fazia adjudicações era corrupto. É muito estranho; não é possível uma pessoa ser tão bipolar. A verdade é que, durante a magistratura dele, era voz corrente que os processos andavam ou não em função da aproximação que se fazia.

– Está a acusação a proteger o sistema?

M.A. – Acho que sim. Para além do desequilíbrio chocante entre o tratamento dado à acusação e à defesa.

– O Direito de Macau, de raiz portuguesa, é garantístico. Como os códigos não mudaram, mudou a cultura de aplicação?

M.A. – A cultura de aplicação é agora menos transparente, menos isenta, limitativa dos direitos. A Lei é interpretada à letra e com um rigor fundamentalista quando toca aos direitos do réu. E há claramente dois pesos e duas mediadas em benefício da acusação e prejuízo da defesa.

– Isso afeta a vida dos residentes, mas também a confiança internacional…

M.A. – Não há sistema económico que funcione bem sem uma boa Justiça. E se não há corrupção nas magistraturas, há falta de isenção perante a Administração. Ao contrário do que se diz, não acho que haja tratamento desigual em favor das empresas chinesas contra as europeias ou outras. Já vi em tribunal serem invocadas relações especiais com o governo chinês e o Partido Comunista. Mas, nessa matéria, os tribunais são em regra competentes e isentos.  

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“Esperança na China”

Manuela António espalhou as comemorações do 30º aniversário do escritório por toda a semana, optando por não convidar ninguém do governo, que “não tem prestado atenção à Justiça, nem dado aos advogados o seu devido lugar”. Convidou juízes portugueses – “os chineses têm medo de se darem com os advogados” – que preferiram não aparecer – jornalistas, amigos e clientes para um vasto programa que, para além dos jantares no Bela Vista e no Clube Militar, “ícones desta sobrevivência heroica dos portugueses”, centrou-se em dois grandes temas: proteção de dados e boa governança empresarial.

Assim nasce, no âmbito das comemorações, o Instituto de Governança Corporativa de Macau, em associação com o BNU, CTM, MGM, CESL Asia e Golden Crown, primeiras empresas associadas porque “já seguem as boas práticas de governança”, dada a “vasta experiência com parceiros internacionais”, explica Manuela António, que já na segunda-feira organiza um almoço para angariação de novos sócios. Sendo um tema “novo em Macau, se lhe tivessem dado a devida importância nos EUA e na Europa, talvez se tivessem evitado as crises económicas e financeiras, pelo menos com a dimensão e o impacto que tiveram”.

O segundo tema foi tratado numa conferência com Vasco Fong, ex-juiz e coordenador do Gabinete para a Proteção de Dados. “Não podia ser mais atual, pois é preciso encontrarmos o equilíbrio entre as novas tecnologias, a proteção dos estados e dos cidadãos”, conclui Manuela António, voltando ao tema que domina toda a entrevista: “Macau está num período baixo, porque a Administração não corresponde aos anseios da população e àquilo que Macau merece. Mas temos de ter esperança”.

E a esperança, percebe-se, é de certo modo transferida para Pequim: “Acho que a China não se vai esquecer, até porque tem a responsabilidade e quer manter Macau como símbolo do êxito da administração chinesa com autonomia”. Neste “olhar” que pede à China, “atento mas distante”, Manuela António deposita a esperança perdida na governação local, embora frisando sempre a necessidade de “respeitar o compromisso com a autonomia garantido pela Lei Básica”. O problema, sustenta, é que a China às vezes “olha pouco” para Macau, “como nesta estória da Lei de Terras”; noutros caso “olha demais”, por exemplo “ao querer incorporar no governo pessoas que se calhar não são realmente de Macau”. Apesar de tudo, conclui, “a China é um exemplo de grande sucesso e tenho a esperança de que será coerente e saberá encontrar o equilíbrio que Macau precisa para ser o exemplo de sucesso que merece”.

“Administração privilegia os advogados chineses”

– Em 1989 havia 40 advogados em Macau. Hoje são quase 350, a maioria de etnia chinesa – em parte bilingue. Durante a Administração portuguesa, para além de boas posses, os advogados portugueses tinham network política, eram deputados, detinham jornais… Essa influência perdeu-se?

M.A. – Os advogados continuam a ter essa influência; os portugueses é que não, porque a Administração privilegia claramente os chineses. Para pareceres, arbitragens ou contratos, em 90 por cento dos casos recorre a advogados chineses. Há até os chamados escritórios do regime. A Administração portuguesa raramente recorria a advogados, porque tinha nos seus quadros bons juristas.

– Há hoje défice de juristas na Administração?

M.A. – Há défice de bons juristas. A maior parte deles não domina a língua portuguesa; logo, não podem ser bons. Até porque vêm de universidades da China, ou locais, que não ensinam Direito de Macau. Salvo as raras exceções de juristas portugueses – e uns poucos bilingues – que são bons, a maior deles é muito fraca. Daí também a necessidade de a Administração recorrer aos advogados.

– Será relacional? Ou pior?

M.A. – Há privilégios por causa das ligações políticas de quem apoiou o chefe do Executivo e a Administração. Há mesmo lobbies, apoios e favores. Certamente o critério não é o da qualidade, porque há melhores escritórios que esses – ou pelo menos tão bons. É mais uma manifestação da falta de transparência e de estratégia por parte deste governo. Basta ler as Linhas de Ação Governativa para se perceber que não há ideia nenhuma naquelas cabeças. Podiam não ter ideias e trazer gente de fora, como fez Singapura. Mas este governo não tem abertura para isso.

– Está em causa o espaço dos advogados portugueses em Macau?

M.A. – Não, porque são um mal necessário. Quer queiramos quer não, a qualidade impõe-se. E não é possível ter boas leis e boa Justiça sem magistrados e advogados portugueses.

Paulo Rego

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