O primeiro Plano Quinquenal para Macau anuncia que o papel da cidade como intermediário entre a China e os países de língua portuguesa vai entrar numa “nova etapa”, mas especialistas mostram-se céticos. A ideia é boa, mas tem falhado por falta de concretização.
“Nunca se tornou evidente para mim qual é o contexto exato do papel de Macau ou se Macau tem capacidade e uma ideia clara acerca do seu papel”, comenta o economista José Isaac Duarte.
Foi em 2003 que Pequim anunciou o destino de Macau como plataforma entre a China e os países lusófonos e desde então é raro o discurso oficial de alto nível em que esse desígnio não seja mencionado.
A criação do Fórum Macau, no mesmo ano, veio consubstanciar a intenção, realizando-se com regularidade colóquios e encontros ministeriais. O Fórum facilita deslocações aos países lusófonos que, por sua vez, recorrem a Macau para fazer apelos ao investimento chinês.
Também o Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau (IPIM) se debruça sobre as relações com os países de língua portuguesa e irá criar este ano um “departamento específico” dedicado a este fim.
No entanto, persistem dúvidas sobre a real eficácia de Macau como ponte entre economias que, só por si, podem facilmente fazer negócios.
“Comissão? Que comissão?”
A recente criação da Comissão para o Desenvolvimento da Plataforma de Serviços para a Cooperação Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, presidida pelo chefe do executivo, comprova, para Isaac Duarte, essa falta de rumo.
No Plano Quinquenal de Macau até 2020, em consulta pública até esta semana, é indicado que a comissão “tem como missão estudar e elaborar as medidas e as políticas necessárias à promoção da construção desta plataforma”.
“O Fórum foi criado em 2003. Ao fim de 13 anos de atividade o chefe do executivo cria uma comissão presidida por ele próprio para definir qual é a atividade a desenvolver. É preciso dizer mais? Os factos falam por si”, diz o académico.
A Agência Lusa contactou o Fórum Macau para a realização de uma entrevista, mas tal não foi possível. O IPIM, que tem a seu cargo a secretaria-geral da comissão, salienta que esta entidade vai “ser responsável por delinear um projeto para Macau baseado na política da Plataforma”.
“Vai conduzir investigação relacionada com a política da Plataforma e intensificar a formação e trocas culturais e comércio entre a China e os países de língua portuguesa, além de disponibilizar assistência e serviços de consultadoria às partes envolvidas em tradução/interpretação e noutras matérias relacionadas com língua, finanças, assuntos legais e gestão”, diz o instituto, em resposta escrita.
A comissão, defende o IPIM, vai permitir a Macau “utilizar plenamente as suas vantagens especiais, impulsionando o seu papel como plataforma e desenvolvendo uma forte colaboração entre a China e os países de língua portuguesa”.
Isaac Duarte considera que a ideia de Macau fazer esta intermediação “tem muito interesse e em potência tem toda a lógica”, mas alerta para o facto de, “na prática, ter dificuldade em ganhar tração”.
Individualmente, Macau “tem pouquíssimas relações comerciais com qualquer um dos países lusófonos, com exceção do Brasil e Portugal”, e essa relação económica direta “será sempre fraca”, aponta Isaac Duarte, explicando que o que existe está essencialmente assente na importação de alimentos, já que Macau tem população ocidental “que consome determinado tipo de produtos que vêm sobretudo de Portugal e do Brasil”.
No Plano Quinquenal, o Governo propõem-se aumentar, até 2020, o valor das trocas comerciais entre Macau e os países lusófonos em 10%, em relação aos 600 milhões de patacas registados no ano de 2015.
“Não deve ser difícil, [as trocas comerciais] são tão baixas”, comenta, desvalorizando a importância da meta.
O IPIM salienta os laços “especialmente fortes” com Portugal, devido a “motivos históricos”, e com o Brasil, a onde Macau enviou “nos últimos anos” delegações empresariais para participarem em várias feiras comerciais. O Brasil também participa anualmente na Feira Internacional de Macau (MIF) e no Fórum e Exposição Internacional de Cooperação Ambiental (MIECF).
Grandes trocas fora de Macau
Será como intermediário que Macau pode brilhar, mas esse papel “não está bem clarificado” e “era preciso determinar qual é o serviço e quem são os clientes”, ressalva o economista.
“Se falar com alguns comerciantes locais sobre se querem exportar para um dos países lusófonos, eles perguntam ‘E se não me pagam? A que porta é que vou bater? Quais são os mecanismos de garantia que tenho? Quais são os mecanismos de seguro que tenho? Quais os mecanismos de intervenção, de arbitragem, judiciais que tenho para ressarcirem dos meus danos?’”, explica.
Perante críticas à falta de frutos concretos, o IPIM garante que Macau está a “desempenhar um papel cada vez mais importante na cooperação comercial e na comunicação entre a China e os países de língua portuguesa”.
Isaac Duarte questiona também o peso da intervenção de Macau nas mais importantes relações económicas entre estes países.
“O Brasil nunca irá discutir a Macau os problemas da construção aeronáutica espacial, parece-me evidente. E Angola nunca virá a Macau discutir a exportação de petróleo”, comenta.
As trocas comerciais entre a China e os países de língua portuguesa têm vindo a cair: em 2015, desceram 25,73%, atingindo 98,47 mil milhões de dólares, a primeira queda desde 2009. Os dados mais recentes deste ano apontam para uma queda de 23,03% no primeiro trimestre do ano, face ao período homólogo de 2015.
Émilie Tran, investigadora da Universidade de São José e autora de um estudo sobre a importância dos seminários organizados pelo Fórum Macau como instrumento diplomático da China, alerta que, apesar de “muito ter acontecido” entre a China e os países lusófonos como grupo, “muito mais tem acontecido ao nível bilateral” com os grandes parceiros. É o caso do Brasil, “para quem o Fórum não é assim tão importante e que lida diretamente com Pequim”.
O Brasil é, na verdade, “mais um concorrente” do que um parceiro e, por estar geograficamente localizado na América, “está sob outras influências”. Já Timor-Leste é o “mais dependente” da China, considera.
“As relações da China com os países de língua portuguesa têm crescido, sim, mas não são tão centrais, digamos, como as com o G7 e outras organizações multilaterais”, contextualiza.
A investigadora aponta para um desequilíbrio na forma como o Fórum funciona: “Até agora, continua a ser uma iniciativa da China e é a China/Macau que disponibiliza o orçamento do Fórum. Assim, os países de língua portuguesa são convidados muito bem tratados da China no Fórum, ao invés de serem tratados como iguais”.
Para Émilie Tran, o Fórum Macau tem conseguido “conquistar os corações” dos participantes dos países lusófonos através dos seus seminários, contribuindo para promover uma imagem positiva sobre a China, mas tal não significa que “já não haja dúvidas ou suspeitas sobre as verdadeiras intenções da China”.
Para os próximos cinco anos, a investigadora vislumbra a predominância de um tema: o projeto de investimento “Uma Faixa, Uma Rota”.
“Prevejo muitos eventos e projetos, incluindo conferências académicas, debates, investigações relacionadas com o ‘Uma Faixa, Uma Rota’, o que me surpreende, porque é uma ideia decretada por Pequim que reflete a visão da China sobre a remodelação da política e cooperação globais (…) O facto de haver muita conversa sobre ‘Uma Faixa, Uma Rota’ quando é algo ainda embrionário mostra como os cientistas sociais responderam ao apelo da China para abraçar esta visão, ao invés de mostrarem pensamento independente”, diz.
Já Isaac Duarte vê o futuro das relações entre Macau, China e países lusófonos muito semelhante ao presente: “Fala-se muito do potencial, do futuro, mas quando o futuro chega não é muito diferente do passado”.
Inês Santinhos Gonçalves – Exclusivo Lusa/Plataforma