Paulo Rangel, ministro português dos Negócios Estrangeiros – até ver em exercício – veio cá dizer o que se gosta de ouvir: a importância de Macau, do “património imaterial” da diáspora – do “legado histórico”, do futuro anunciado “na Grande Baía”. Já agora… a saudosa “prioridade”, que há tanto não se dizia, da relação com a China. Conservador assumido, atlantista convicto, Rangel engrossa a fileira dos europeus constrangidos com o “crazy man” que habita a Casa Branca. Antes tarde que nunca.
Há esse elefante na sala, que o discurso não move: em Portugal, “não temos a perceção da importância de Macau, da ligação à China, desta relação histórica e do posicionamento na Grande Baía”, resume António Costa Silva (ver entrevista – páginas 5 a 7). Mais que destruir a mensagem, importa a questão de fundo: essa coisa, estranha, de planear, cumprir estratégias, medir resultados, não cola na pele de ser português. Urge olhar para o umbigo, falar mesmo com ele; não basta botar faladura.
A Europa não age – reage. É esse o timbre que tem na modernidade; Lisboa, como sempre; reage à reação de Bruxelas. O comboio europeu tem duas velocidades: os países charneira andam a vapor; os outros arrastam-se sem motor. “A Europa tem de contar consigo própria”, avisou Merkel, quando chocou de frente com o primeiro mandato de Trump, em 2016. Com a Covid, e a Guerra da Ucrânia, a antiga chanceler alemã foi vilipendiada na praça pública; pelos mesmos que antes a seguiam – tinha poder e dinheiro – e rapidamente guinaram para o messianismo atlântico de Biden; e a demonização de Xi Jinping.
Terá o mundo virado ao contrário? Sim – e não. Porque duas verdades, antagónicas, viajam no mesmo vagão. O regresso a oriente, com bilhete expresso, não é estrutural – é estado de necessidade. A Europa não trata de si própria; talvez um dia desbrave o destino; até ver, segue a pista do novo altar. A performance da China impressiona: após uma paralisia pandémica, sem precedentes, deixa os Estados Unidos a milhas na nova ordem das coisas: energia sustentável, tecnologia, robótica, inteligência artificial… e redenção nos mercados consumidores. Aí, já a Europa compra o camarote. Antes assim. Como há muito se diz no Brasil, e na África lusófona, mais vale ter dois impérios do que um papa hegemónico. É esse o poder dos pobres de espírito.
Vamos então a isso Sr. ministro: business as usual. Lisboa quer usar Macau? Cá estamos. Talvez possa ver quem cá está, mesmo com olhos de ver, como há décadas não se faz; quiçá possa perceber, esquecendo os bicos dos pés, como por cá sobrevive, cresce e aparece, quem nunca teve carvão que cheire a Lisboa. Lá não se lê, não se ouve, não se pensa no horizonte; fala-se muito e nada se percebe do que por cá se passa – e vai passar. Insisto: cá estamos para isso. Pode ser que mude; vamos fingir acreditar que há um plano político, claro e consistente; que as empresas vão cá chegar; que se traz massa crítica, investimento; que há real consciência do património imaterial, que a Praça do Comércio, de facto, não tem – a não ser quando há boletins de voto, ou cheques de cá para lá.
Porque não? Afinal, não há nada a perder. Quem cá está nesta margem, sem nunca vir nada do centro, por cá continuará a estar; com o jeito que sabe e os instrumentos que pode. Se houver mais que isto, crescemos juntos Sr. ministro; se não houver, ao menos o discurso mudou. Também sabemos usar isso – ao menos isso. Na verdade, usamos sempre o que temos; nunca pudemos cá estar com aquilo que nunca tivémos.
*Diretor-Geral do PLATAFORMA